Março - 2023 - Edição 289

Um recomeço

No dia em que completa 60 anos, Josy se recusa a assoprar as velas do bolo de aniversário. Ela já está de malas prontas. Havia tomado uma decisão: iria deixar o marido e a casa para recuperar a sua liberdade, ganhando a estrada com a velha Kombi. Sua família, inicialmente chocada, não deixará de culpá-la por essa escolha, que todos consideram egoísta. Nos primeiros dias, Josy irá se manter firme, conhecendo novas amigas, que vivenciam destinos semelhantes e enfrentam a mesma incompreensão social. Mas será isso suficiente para que ela assuma plenamente sua vontade de um recomeço? Talvez, se o amor estiver envolvido. As autoras Aimée de Jongh e Ingrid Chabbert criam, em Sessenta Primaveras no Inverno (Editora Nemo), um retrato sutil, comovente e moderno de uma crise de meia-idade em um road movie que é impossível parar de ler até o final. Uma obra com um surpreendente sopro de liberdade, que se atreve a lidar com o tabu da mudança de vida e da sexualidade. Aimée de Jongh escreveu mais de dez séries de histórias em quadrinhos e trabalhou em cinco filmes de animação. Em 2014, Aimée começou a trabalhar em seu primeiro romance gráfico, que ela também roteirizou: Le Retour de la Bondrée , que lhe rendeu o prestigioso Prêmio Saint-Michel para o melhor quadrinho de 2014-2015. Ingrid Chabbert é autora de livros para jovens e escritora de histórias em quadrinhos

Humor e ironia

Quarto romance publicado por Verissimo, O Opositor, que saiu pela primeira vez em 2004, agora reeditado pela Editora Alfaguara, foi também o quinto volume da coleção Cinco Dedos de Prosa, em que a editora Objetiva convidou autores para escreverem histórias inspiradas em cada um dos dedos das mãos – Luis Fernando Verissimo ficou com o polegar. O narrador é um repórter paulista que viaja a Manaus para escrever uma matéria e é seduzido por Serena, uma mulher com os dois polegares decepados que lhe prepara chás alucinógenos. Num raro momento de sanidade, ele entra num bar e conhece Polaco, um homem grande e vermelho que parece estar sempre bêbado. No bar – que acaba se revelando uma metáfora do próprio Brasil –, Polaco conta sua história. “Verissimo é capaz de armar uma trama, construir bons personagens e dar coerência a assuntos heterogêneos, e mesmo díspares. A linguagem meticulosa e exata desse mestre da síntese aponta para algo grande. Outra singularidade é a combinação de humor e ironia, que resulta numa expressão cômica, sempre crítica, sutil e inteligente. [...] Uma curiosidade: o romance policial O Opositor é ambientado em Manaus e tem um personagem bigodudo com cara de jambo. O nome dele é Hatoum. Lembro que ri muito.” – Milton Hatoum. Luis Fernando Veríssimo, um de nossos escritores mais queridos e populares, nasceu em Porto Alegre, em setembro de 1936.

Esquecido

Negro Sou – A questão étnico-racial e o Brasil: ensaios, artigos e outros textos (1949-73) Guerreiro Ramos (Zahar Editora), organização de Muryatan S. Barbosa, é uma coletânea inédita de textos sobre a questão étnico-racial por um dos mais importantes pensadores brasileiros do século XX. Considerado um dos pais da sociologia brasileira contemporânea, Guerreiro Ramos (1915-82) foi um dos pensadores de maior renome no país nos anos 1950 e 1960. Foi também professor, ensaísta, servidor público, poeta, teórico da administração e político. Contraditório e polêmico, Guerreiro acabou sendo marginalizado e apagado do cânone das ciências sociais do Brasil por sua independência de pensamento e personalidade combativa. Negro Sou é uma seleção de textos sobre a temática étnico-racial escritos pelo autor entre 1949 e 1973 – muitos inéditos em livro –, que contemplam sua complexa relação com a tese da democracia racial no país, a participação ativa no Teatro Experimental do Negro e seus estudos precursores sobre branquitude e decolonialidade. Organizado por Muryatan S. Barbosa, especialista no pensamento guerreiriano, o livro busca recuperar a atenção devida a uma obra que não apenas segue atual, mas que tem muito a acrescentar aos debates de hoje sobre racismo e identidade no Brasil.

Favela pulsante

Depois de estrear na literatura com a coletânea de contos O Sol na Cabeça e alçar de imediato a condição de ponta de lança da ficção brasileira, com forte repercussão internacional, sendo publicado por grandes editoras em mais de dez países, Geovani Martins publica seu primeiro romance – Via Ápia (Companhia das Letras). Nesta engenhosa narrativa sobre os impactos da instalação da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) na vida dos moradores da Rocinha, a trama é dividida em três partes: a expectativa com relação à invasão; a ruidosa instalação da UPP; e a silenciosa partida da polícia e a retomada dos bailes funk que fazem o chão da favela tremer. Em capítulos curtos, que trazem perspectivas cruzadas, o narrador nos conduz pelas vidas dos cinco jovens protagonistas – suas paixões, amizades, dramas pessoais, ambições, frustrações, sonhos e pesadelos. Brilhante nos diálogos e mestre na narrativa, Martins é também certeiro no diagnóstico dos efeitos perversos da guerra às drogas. Ao enviar sua tropa de choque para a Rocinha, o Estado parece apresentar uma única resposta aos problemas do Brasil: a morte. A resposta dos moradores é bem outra: a vida, sempre ela, é o que faz a favela pulsar. Geovani Martins nasceu em 1991, em Bangu, no Rio de Janeiro. Trabalhou como “homem-placa”, atendente de lanchonete e de barraca de praia. Em 2013 e 2015, participou das oficinas da Festa Literária das Periferias, a Flup.

Escritor

Conheça Rafael Sant´Anna, um jovem como tantos. Com uma diferença: quer ser escritor. Quer muito. A vida não ajuda. Tem problemas como cuidar da avó e mãe dependentes, ir às compras, ser o “homem da casa”. Mas quando o desejo é maior que tudo, se torna necessidade. Daí a gente se põe em movimento. Rafael escreve contos. Decide fazer uma oficina literária e a roda da vida começa a girar. Mudanças em cadeia ocorrem e os contos vão saindo. A mulher que acorda e dá com um par de estatuetas com chifres na porta de casa. O jovem que encontra o pai perdido há tanto tempo sob uma chuva de balas. O homem que se isola em uma ilha e é aterrorizado pela entidade local. O fotógrafo que se encanta com um andar vazio no prédio onde vive sem imaginar os perigos que encerra. Acompanhamos Rafael Sant´Anna em sua jornada do herói para se tornar escritor. Entre ganhos e perdas, ele amadurece, se arrisca e colhe os frutos do trabalho feito um pouco às cegas, tendo como único guia a Grande Esfera Negra, “de onde tudo brota, buraco negro que atrai, engole, regurgita. Dela vêm as palavras, a Vida, tudo deste mundo e do outro também”. Valéria Martins é jornalista formada pela PUC-Rio e agente literária desde 2008 à frente da Oasys Cultural – www.oasyscultural.com.br. O Lugar das Palavras (Editora 7 Letras) é seu primeiro livro de ficção literária

Lembranças

Entrei no século XXI já morando em Praga. Vários acontecimentos extrassensoriais se passaram na minha mente e pele em Praga. Todos os amigos, amigas e familiares que nos visitavam queriam, é claro, conhecer o Castelo de Praga. Foi por isso que, em horas vagas, me transformei em um guia amador da cidade e do seu castelo. Numa dessas peregrinações turísticas pela cidadezinha do castelo, com suas vielas e ladeiras, entrei com amigos em uma pequena loja de souvenir, com pinta de loja de arte. Tomei um susto quando me deparei, por trás do balcão principal, com o quadro que emoldurou a cômoda onde minha mãe guardava lençóis e toalhas, ao lado da cama onde dormi por muitos anos. Tratava-se de um anjo da guarda, em tons de verde e rosa, abrindo suas asas protetoras sobre um menino que tentava apanhar uma bola, à beira de um precipício. Não era um quadro parecido com o meu. Era uma réplica, em melhor estado ainda do que aquele que encantou a minha infância. Este pequeno quarto da minha casa era muito especial por três motivos: tinha ligação direta com o quarto dos meus pais; havia um janelão que se abria para a varanda, em cima da mesa de passar roupas, onde a Maria lavadeira passava metade do dia cachimbando, soprando brasas e papeando comigo. Esta entre outras memórias são relatadas por Miguel Gustavo de Paiva Torres em Memórias ao Vento (Editora Arqueiro).