Setembro, 2025 - Edição 308

Emoção, requinte e tradição marcam a posse do imortal José Roberto Castro Neves na ABL

Emoção, requinte e tradição deram o tom da noite de posse do imortal José Roberto Castro Neves, que marcou a história da Casa de Machado com uma das cerimônias mais bonitas já vistas até hoje. Os convidados foram surpreendidos com a cenografia deslumbrante preparada pelo decorador Antonio Neves da Rocha, que transformou a parte externa do Petit Trianon numa monumental biblioteca, com centenas de títulos empilhados do chão até o teto, numa verdadeira celebração à leitura. Dois telões permitiram que todos pudessem acompanhar o ritual de posse, ouvindo a fala emocionante dos discursos.

A solenidade contou com os tradicionais ritos da casa. O discurso de recepção ao novo acadêmico foi feito pelo advogado Joaquim Falcão; a espada foi entregue pelo decano da ABL, José Sarney; o colar, por Antonio Carlos Secchin; e o diploma, por Paulo Niemeyer. A comissão de entrada foi formada pelas Acadêmicas Rosiska Darcy de Oliveira e Fernanda Montenegro, além do acadêmico Geraldo Carneiro. Já a comissão de saída contou com Domício Proença Filho, Antônio Torres e Arno Wehling. Pela primeira vez, deu- -se lugar a candidatos eleitos mas ainda não empossados na Academia: os escritores Paulo Henriques Brito e Ana Maria Gonçalves participaram tanto da foto oficial quanto sentaram no salão nobre.


Tendo como ponto central a celebração da palavra, da memória e da cultura brasileira, o novo ocupante da cadeira número 26 (em substituição ao saudoso Marcos Vilaça) entrou na ABL com alma e sensibilidade, somadas ao compromisso firme com a educação e a cultura. Com o amor declarado pelos livros, o acadêmico abriu seu coração num discurso emocionante, com um tributo à leitura como força essencial na sua formação: “Nasci numa família que cultivava a leitura e gostava de discutir o que lia. Desde criança, jamais consegui respirar sem ter livros por perto. Com eles, encarei desafios, mitiguei dores, compartilhei alegrias. Cedo percebi: a literatura é a verdadeira alquimia. Transforma tinta no papel em ideias, sentimentos, alimento para a alma e motor para novas descobertas. Para mim, os livros funcionaram como uma droga lícita. Um “dopping” do bem. A literatura coloriu meu caminho. Desde garoto, meus ídolos vinham das letras. Se o acadêmico Paulo Niemeyer abrir docemente minha cabeça, encontrará, nos lobos cerebrais, um mar de letras, novelos enredando do Padre Bernardes ao Kama Sutra, de Camões a Asterix. Como definiu o imortal Geraldo Carneiro: ‘Ler é a arte de viver por empréstimo.’ Fui menino de rua com Os Capitães da Areia, de Jorge Amado, e tornei-me um religioso ortodoxo com Isaac Bashevis Singer. Pelas letras, já morei na Rússia, em São Tomé e Príncipe e na Terra Média. Visitei Macondo e Lilipute. Fui embora para Pasárgada e voltei para Ítaca. Cruzei o sertão (do tamanho do mundo) e os mares atrás de um enorme cachalote branco. Ao longo da vida, tudo o que fiz se deu, acima de tudo, pelos livros. Estar aqui, assumindo uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, se deve ao que recebi dos livros.”

Dividido em três conceitos jurídicos: obrigação, tradição e responsabilidade, se tivesse que dizer apenas uma palavra, o discurso do imortal se resumiria em obrigado: “Obrigado – uma palavra magnífica.” E explicou: “A etimologia vem de Obligatus: ‘atado ao redor, ligado, preso.’ Quando alguém diz: ‘obrigado’, significa que se sente ‘agrilhoado’. O mais importante dos Livros do Código Civil é o das Obrigações, nas quais se estudam as relações de crédito e débito. Meu coração encontra-se assim: atado. Em débito. O motivo: gratidão. Gratidão, em primeiro lugar, aos ilustres acadêmicos por admitirem meu ingresso nesta Casa histórica”, agradeceu emocionado.

Em sua fala, Castro Neves alertou ainda para os baixos índices de leitura no Brasil e lamentou a lógica “utilitarista” do mundo atual, que seria apegada “aos ganhos econômicos, que desconsidera outras formas de bem-estar, como a solidariedade, a filantropia, a educação humanística”. Ele associou o empobrecimento do debate público à falta de cultura e de acesso à literatura. E evocou a necessidade de um pacto cultural coletivo para superar este cenário: “Essa é a missão minha e de todos nós”, declarou o novo acadêmico, que é advogado, sócio do escritório Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados, além de Doutor em Direito Civil e bacharel pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre em Direito pela Universidade de Cambridge. Desde 1996, tem se dedicado à carreira docente na Pontifícia Universidade Católica e na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, onde já lecionou diversas disciplinas.

Dono de uma das maiores bibliotecas de Shakespeare no Brasil, eleito com 27 votos em total de 34 possíveis, aos 54 anos, tornou-se o mais jovem imortal da ABL, além de ser titular da cadeira 27 da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

É também membro de diversas comissões, dentre as quais a Comissão de Direito Civil do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB) e a Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB Federal. Atualmente, é presidente da Editora OAB-Federal, responsável pela Revista da OAB. Sua produção acadêmica é vastíssima, com livros e artigos nas mais diversas áreas do Direito, principalmente obrigações, contratos e arbitragem.



Além de jurista, é um grande humanista, destacando-se nas intersecções entre Direito e literatura, aproximando o público leigo do universo jurídico e unindo ao seu conhecimento técnico um amplo horizonte cultural. No mesmo dia em que ingressou no quadro dos imortais da ABL, ele lançou o livro Que é ser advogado?, que divide a profissão em três pilares: cultura humanística, conhecimento técnico e ética, traçando um panorama sobre a essência e a relevância da advocacia.

Sua larga produção literária inclui 18 livros sobre Direito, literatura e história, somando cerca de 200 mil exemplares vendidos. Entre os títulos mais conhecidos estão Como os Advogados Salvaram o Mundo (2018), Medida por Medida: O direito em Shakespeare (2019) e Os Grandes Julgamentos da História (2018).

Este ano, Castro Neves estreou também na ficção, com o elogiado Ozymandias. Apresentando uma dezena de personagens em uma narrativa complexa e caleidoscópica, o romance aborda questões como a força do destino e pensa a formação do Brasil a partir de uma pequena cidade fictícia (Ateninhas). O livro dialoga com a obra de diversos autores canônicos, de Guimarães Rosa a Shakespeare. A biblioteca do novo acadêmico, aliás, possui cerca de 5 mil títulos do bardo inglês. Parte dela foi adquirida da crítica e tradutora Barbara Heliodora, morta em 2015, e uma das maiores autoridades brasileiras no assunto.

Shakespeare, por sinal, é o tema de diversos títulos de não ficção de Castro Neves. O mais recente deles, Shakespeare Ontem, Hoje e Amanhã, e Amanhã, e Amanhã explora a atemporalidade de peças como Hamlet e A tempestade. Ele também traçou paralelos entre o inglês e os universos jurídicos e musicais nos títulos Medida por Medida: O direito em Shakespeare e Shakespeare e os Beatles, de 2019 e 2021, respectivamente.

Falando sobre os motivos que exigem a leitura para um bom advogado, o novo imortal explica: “A alma se alimenta de sabedoria. Só se comunica bem quem lê. Com a leitura, aumenta-se o vocabulário e aprendem-se as inúmeras formas de se manifestar. Advogado é aquele que fala pelo outro. Essa é a própria origem da palavra: ad vocare. Fundamental, portanto, que ele saiba se expressar. A literatura é a mais poderosa escola da comunicação.”

Em seu discurso de posse, Castro Neves ressaltou também que o empobrecimento do debate público está diretamente ligado à falta de cultura e de acesso à literatura: “Sem cultura, perdemos a identidade, ficamos sem referências. Spinoza ensinou: ‘As coisas que nada têm em comum não podem ser compreendidas umas pelas outras.’ Para que possamos compreender e ser compreendidos, devemos compartilhar valores.”

Ao destacar o percurso dos seus antecessores na cadeira 26, o escritor e advogado traçou um panorama da cultura brasileira através dos tempos, reforçando o papel da ABL como guardiã da memória, da diversidade e da identidade nacional, lembrando da importância de perpetuar tradições: “No ‘juridiquês’, tradição é a entrega da coisa, com o fim de operar a transferência da propriedade. Tradição consiste na entrega. A entrega da cultura, dos hábitos, da história, passada de geração a geração. A tradição nos protege, pois garante a força de uma sociedade, unida ao redor de sua cultura”, afirmou.

Por Manoela Ferrari