Março, 2024 - Edição 299

Literatura de Cordel, patrimônio cultural do Brasil

A Literatura de Cordel possui um legado riquíssimo, de enorme importância cultural. Destacando-se pela diversidade, seja de autores ou temáticas, traduz o reflexo da história, realidade ou vivência de um povo que busca valorizar suas raízes. Com características próprias, regras e, principalmente, pluralidade, carrega em suas palavras tradição, cultura e memória.

Entre versos, rimas e cantoria, esse gênero cultural popular abrange não apenas letras, mas também música e ilustração. Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, o Cordel é veículo de comunicação, ofício e meio de sobrevivência para inúmeros cidadãos brasileiros: poetas, declamadores, editores, ilustradores (desenhistas, artistas plásticos, xilogravadores) e folheteiros (como são conhecidos os vendedores de livros). Afinada com o artigo primeiro de seu Estatuto – “a cultura da língua e da literatura nacional” – a Academia Brasileira de Letras (ABL), recentemente, firmou um acordo de cooperação técnica com o Sebrae do Ceará, erguendo o “cálice da tradição”. Uma tradição apta a modernizar o presente e impedir que o germinar do novo enseje a demolição de um repertório ancestral, que tanto nos explica. É preciso preservar o saber acumulativo de fragmentos filtrados e aprovados pelo tempo, e que, vistos de longe, formam um mosaico a sinalizar os contornos de um país.

A parceria prevê o desenvolvimento de estudos, pesquisas, publicações e eventos relacionados ao Cordel, substancializados nas questões alusivas ao patrimônio cultural e economia dos nove estados nordestinos. Segundo Joaquim Cartaxo Filho, superintendente do Sebrae/CE, “Ao reconhecermos a autenticidade, acessibilidade e diversidade da literatura de cordel, estamos salvaguardando a rica tradição cultural brasileira, motivando a leitura e promovendo a educação para todos os cidadãos, gerando empregos e renda e, ao mesmo tempo, consolidando o Brasil como um país multicultural e literariamente enriquecedor.”


O acadêmico Antônio Torres elogiou a iniciativa do Sebrae/CE, ao levar à ABL a necessidade de reconhecimento da Literatura de Cordel não apenas como uma manifestação popular, mas como poesia pura. O pleito, acolhido pela ABL, deu origem ao envolvimento de vários equipamentos culturais de Fortaleza, ampliando a importância do tema e a relevância de se discutir esse tipo de arte, que, segundo o premiado autor de “Essa Terra”, está na raiz da alfabetização de várias gerações de nordestinos: “Inclusive eu. Fui alfabetizado, inicialmente, graças à oralidade do Cordel, lido pela minha mãe”, relembra o ilustre mestre baiano, filho de D. Durvalice, nascido num distrito de Inhambupe chamado Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), no sertão baiano.


Outro acadêmico que se encanta (e nos encanta) com o Cordel é o pernambucano José Paulo Cavalcanti. Recém-eleito sócio correspondente da Academia Portuguesa de Letras (ou Academia das Ciências de Lisboa), o atual ocupante da cadeira 39 da Casa de Machado, especialista em Fernando Pessoa, mostra-se incansável ao homenagear suas raízes. Quando o procuramos para ouvi-lo sobre o tema, fomos brindados com arte pura, de quem carrega “canto” até na grafia do nome. Eis, na íntegra, o que nos respondeu Cavalcanti.

“Nenhum personagem representa melhor o Nordeste. Os cantadores são seu rosto e sua voz. Nesse texto, peço vênia ao mestre Niskier para ressaltar uma de suas (muitas) qualidades – a Astúcia. A mesma que, para o amigo Ariano, era ‘a coragem dos pobres’. E, para não perder tempo com esse palavreado sem brilho, vou logo a uns poucos exemplos:

1. Patativa de Assaré, cantador e cordelista de Assaré (Ceará), acabou preso por versos que fez contra o prefeito de sua cidade. E, na gaiola, encontrou uma patativa, que é ave de belo canto. Então disse: ‒ Linda vizinha pequena Temos o mesmo desgosto Sofremos da mesma pena Embora em sentido oposto Meu sofrer e teu penar Clamam a divina lei Tu presa para cantar E eu preso porque cantei

2. João Paraibano, cantador do Sítio Pinica-Pau (Princesa Isabel, Paraíba), cantava com Rogério Menezes, de Imaculada (Paraíba). E acabou sextilha dizendo: ‒ Não sei como tu aguentas Uma mulher braba e feia. Rogério respondeu ‒ A minha mulher é feia Porém digna e singela Sua mulher é bonita Entre todas a mais bela Por isso que muitos ursos Estão pulando a janela. E João completou ‒ A minha mulher é bela Estando vestida ou nua Se parece uma sereia Quando desfila na rua Melhor ser corno da minha Do que marido da tua.

3. Pinto do Monteiro (Paraíba) preparou armadilha para Louro, Lourival Batista, de São José do Egito (Pernambuco), dizendo: ‒ Eu saí de Caicó E fui bater em Tabira De Tabira prá Penedo De Penedo a Guarabira Chegando lá eu comi O mocotó de traíra Como traíra é peixe, Pinto jamais poderia ter comido seu mocotó. Então, certo de ter ganho a peleja, Louro respondeu: ‒ Eu já vi muita mentira De Adão até Aló De Aló até Isac De Isac até Jacó Mas nunca houve quem visse Traíra com mocotó Só para ver, desolado, Pinto cantar ‒ Pois eu vim de Caicó E fui até Guarabira Lá vi uma vaca velha A quem chamavam Traíra E agora você me diga Se é verdade ou se é mentira Por tudo, então, viva a sabedoria, a erudição, a simplicidade, a língua certa do povo, futuro prometido, miséria e opulência, realidade e ilusão, o pecado e o paraíso na voz iluminada dos cantadores nordestinos.” José Paulo Cavalcanti Filho (Fevereiro, 2024).


Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC):



Em 1978, o poeta cordelista Gonçalo Ferreira da silva deu início, na Feira de São Cristóvão, na capital carioca, a um grupo de estudos que acabou se tornando o embrião da ABLC, reunindo os expoentes do estilo literário que, com o apoio da Federação das Academias de Letras do Brasil, passou a ter uma sede própria (na rua Leopoldo Fróes, 37, no bairro de Santa Teresa).

Outro precursor foi o poeta paraibano Raimundo Santa Helena, que chegou a concorrer, sem sucesso, a uma vaga na Academia Brasileira de Letras.

Entidade literária máxima a reunir, no Brasil, os expoentes da literatura de cordel típica da Região Nordeste do país, a ABLC, entre suas atividades, publica folhetos de vários autores, além de livros como o Dicionário Brasileiro de Literatura de Cordel. Constituída por quarenta cadeiras, assim como a Academia francesa, que a todas as Academias serve de modelo, cada uma delas sob um patronato, como a brasileira, possui ainda a categoria de sócios beneméritos. Sua primeira diretoria tinha somente três membros: Gonçalo Ferreira da Silva, presidente; Apolônio Alves dos Santos, vice-presidente e Hélio Dutra como diretor cultural.

Origem



A Literatura de Cordel no Brasil é o resultado de práticas culturais em que os cantos e os contos – e suas variantes – constituem as matrizes a partir das quais uma série de formas de expressão se forjou. Na formação da cultura brasileira, tanto indígenas quanto africanos e portugueses adicionaram hábitos de transmissão oral de suas cosmologias, de seus contos, de suas canções.

Apesar de ter começado no Norte e no Nordeste, o Cordel foi disseminado por todo o Brasil, principalmente por causa do processo de migração de populações.

Na verdade, quando falamos em Literatura de Cordel, não estamos falando de uma forma de expressão artística nascida no Brasil. Partindo dos povos conquistadores, o Cordel chegou à Península Ibérica (Portugal e Espanha) por volta do século XVI, e ao Brasil com os colonizadores, no século XVII. Por Salvador ter sido a primeira capital do país, é lá que a Literatura de Cordel tem seu berço. Não fosse a vinda do xilo para o popular e sua disseminação pelo nordeste brasileiro, boa parte de nossa história teria passado somente pelos veículos oficiais da colônia.

O traço visual mais marcante do Cordel é a técnica de impressão através da xilogravura. Nela, as ilustrações por vezes rústicas e feitas à mão, em placas, são transferidas ao papel de forma artesanal. Primeiro, o desenho é passado para uma base em madeira que servirá como molde para que a tinta seja transferida para o papel.

A técnica existe desde o século VIII, quando era utilizada na China para a representação de budistas em livros xilográficos. No Brasil, chegou com a família Real e a imprensa Régia, em 1808. Uma característica interessante é que, somente no nordeste brasileiro, o xilo deixou as “redações” e ganhou o popular, adquirindo identidade própria em folhetos de cordel.

Poesia popular



Popularizado no Brasil por volta do século XVIII, o Cordel ficou conhecido como uma espécie de poesia popular. Ao narrar histórias com elementos do folclore típico da região, sua linguagem simples caiu na graça do povo. Os autores eram chamados de “poetas de bancada” ou “poetas de gabinete”. Depois, foram nomeados de repentistas. Os repentistas se assemelham aos antigos trovadores medievais, comuns em Portugal, contando histórias em músicas e com rima. Costumavam fazer isso pelas ruas das cidades, propagando os poemas cantados.

No período conhecido como Renascença, foi possível a distribuição dos textos em papel. As impressões eram feitas em pequenos cadernos e, posteriormente, penduradas em cordas. Daí, a origem do nome. Um dos maiores nomes do cordel brasileiro é o repentista Leandro Gomes de Barros (1865-1918), considerado o “pai” desse gênero literário. Primeiro brasileiro a produzir cordéis, gravou aproximadamente 1 mil, durante a vida. Foi imortalizado através da obra do saudoso acadêmico Ariano Suassuna. Quem assistiu “O Auto da Compadecida” lembra da cena em que João Grilo e Chicó convencem o padre João a enterrar uma cadelinha, em latim, oferecendo-lhe dez contos de réis. A história original dessa cena está num fragmento do cordel “O Dinheiro – O Testamento do Cachorro.”

Entre os mais recentes cordelistas é preciso citar nomes como José Alves Sobrinho, Homero do Rego Barros, Patativa do Assaré (Antônio Gonçalves da Silva), Téo Azevedo. Zé Melancia, Zé Vicente, José Pacheco da Rosa, Gonçalo Ferreira da Silva, Chico Traíra, João de Cristo Rei e Ignácio da Catingueira. Merece destaque também José Francisco Borges, cordelista há mais de 50 anos. O pernambucano é um dos xilogravistas mais famosos do país e ficou conhecido nacionalmente pela vinheta de abertura da novela “Cordel Encantado”, da Rede Globo.

Arte genuína, simples e carregada de importância para a cultura nacional, o Cordel é representado, há quase 50 anos, por uma Academia Brasileira de Literatura de Cordel*. Somente em 2018, foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro. Por muito tempo, esse gênero sofreu preconceitos. Com o comprometimento de intelectuais, artistas e acadêmicos, no entanto, podemos identificar uma mudança nesse cenário. A Literatura de Cordel tem ocupado mais espaço também na mídia. O cearense Bráulio Bessa, por exemplo, recentemente alcançou notoriedade com o quadro chamado Poesia com Rapadura, no programa Encontro com Fátima Bernardes, na TV Globo. Toda semana, citava poesias escritas por ele com temas atuais e aleatórios, impressionando o público pela emoção nas palavras.

Por Manoela Ferrari