Maio, 2023 - Edição 291

Millôr Fernandes: um século de genialidade

A três meses da data em que seria o centenário de um dos maiores dramaturgos do país, o Jornal de Letras homenageia o grande artista Millôr Fernandes, que tantas alegrias trouxe para os amantes da cultura brasileira, produzindo uma vasta obra gráfica, literária, teatral e jornalística. A paixão pelo teatro e pelo jornalismo fez com que ele criasse e traduzisse mais de uma centena de peças, dezenas de livros e comparecesse, cotidianamente, na grande imprensa brasileira. Foram mais de sete décadas de produção constante e brilhante.

Desenhista, tradutor, jornalista, roteirista de cinema e dramaturgo, Millôr foi um raro artista que obteve grande sucesso, de crítica e público, em todas as áreas em que atuou.

Conhecido pela inteligência e ironia refinadas, que resultaram em frases provocativas e textos bem-humorados, Milton Viola Fernandes (seu nome de batismo) nasceu no Méier, subúrbio carioca, no dia 16 de agosto de 1923. Porém, só foi registrado quase um ano depois, como se tivesse nascido em 27 de maio de 1924. O pai – Francisco Fernandes, espanhol naturalizado brasileiro, morreu em seguida, deixando o escritor órfão, aos dois anos de idade. Para sustentar os filhos, a mãe, Maria Viola Fernandes, foi trabalhar como costureira.

O pequeno Milton, como era chamado, iniciou a vida escolar em 1931. Com habilidades para o desenho e leitor de histórias em quadrinho, copiava quadro por quadro com perfeição. Aos 12 anos, nova tristeza se abateu sobre a família. O menino perdeu a mãe, vítima de câncer, e foi morar com o tio Antônio Viola, que o incentivou a levar seus desenhos para o periódico O Jornal. Os traços perfeitos chamaram a atenção e logo foram publicados, o que lhe rendeu os primeiros trocados.

Aos 15 anos, o jovem, talentoso e esforçado, ingressou no mercado de trabalho, como office-boy em um consultório médico e na revista O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand. Para se aperfeiçoar como desenhista, matriculou-se no Liceu de Artes e Ofícios. Um ano depois, venceu o concurso de contos da revista A Cigarra, onde passou a trabalhar num espaço vago de publicidade. Criativo, deu o nome de PosteEscrito ao conjunto de frases, versos, textos inteligentes e engraçados. A página fez sucesso imediato e acabou por virar uma coluna fixa na revista, onde assinava com o nome de “Vão Gôgo”, alcunha que usou durante um longo período.

Millôr sempre fez piada em relação ao registro de nascimento. Costumava brincar que percebeu somente aos 17 anos que o seu nome havia sido escrito errado na certidão: onde deveria estar Milton, leu “Millôr” (o corte da letra “t” confundia-se com um acento circunflexo, e o “n” com um “r”). Seja como for, gostou do novo nome e o adotaria a partir de então. “Milton nunca foi uma boa escolha”, comentaria anos mais tarde, durante uma entrevista. A data de nascimento também não estava correta: em vez de 27 de maio de 1924, ele nasceu no dia 16 de agosto do ano anterior.

Com apenas 17 anos, tornou-se diretor das revistas A Cigarra, O Guri e Detetive. Em 1942, fez sua primeira tradução: A Estirpe do Dragão, da escritora americana Pearl S. Buck (1892-1973). Em 1943, terminou os estudos no Liceu e retornou à revista O Cruzeiro, onde assinou a coluna O Pif-Paf (que depois viraria uma revista à parte), durante a fase áurea da publicação, entre 1945 e início dos anos 1960. Sua coluna foi um dos carros chefes da maior publicação nacional do período.

Em 1948, viajou aos Estados Unidos, onde conheceu Walt Disney (1901-1966). “Nessa época eu ainda acreditava que Disney sabia desenhar. Só mais tarde, lendo sua biografia, aprendi que até aquela assinatura bacana com que ele autentica os desenhos é criação da equipe”, provocou, na autobiografia que escreveu em seu site. Ainda em 1948, casou-se com Wanda Rubino. No ano seguinte, Millôr assinou seu primeiro roteiro cinematográfico, “Modelo 19”, e foi agraciado com o Prêmio Governador do Estado de São Paulo.

Em 1951, fez uma viagem pelo Brasil, durante quarenta e cinco dias, em companhia do escritor Fernando Sabino (1923-2004), com o intuito de conhecerem melhor o país. Em 1952, viajou para a Europa, conheceu a Itália e, em seguida, Israel.


Como desenhista, dividiu o primeiro lugar com o americano Saul Steinberg, em um concurso realizado na Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires, em 1956. No ano seguinte, organizou uma exposição individual com seus desenhos e pinturas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Sua primeira peça teatral – Uma mulher em três atos – estreou em 1953. A partir de então, iniciou a bem-sucedida carreira também no teatro. Em 1959, apresentou o programa de televisão “Universidade do Méier”, na TV Itacolomi. No ano seguinte, sua peça “Um elefante no caos” estreou, após censura. Com ela, ganhou o prêmio de melhor autor da Comissão Municipal de Teatro.

Em 1963, o premiado escritor abandonou O Cruzeiro e foi trabalhar no Correio da Manhã. Em 1964, criou a revista Pif-Paf. Da década de 1960 até a sua morte, aos 88 anos, o teatro foi um dos principais meios de expressão do artista, mas ele participou também de programas de televisão e colaborou em vários periódicos durante a vida, tais como: O Jornal, Tribuna da Imprensa, Veja, O Pasquim, IstoÉ, Jornal do Brasil, O Dia, Folha de S. Paulo, Bundas e O Estado de S. Paulo.

Apesar da infância trazer marcas tristes, sua obra se associou à comédia, ironia, crítica sociopolítica e de costumes. Tanto sua prosa como sua dramaturgia são caracterizadas pelo humor, muitas vezes ácido, marcado por um espírito provocativo. Além de possuir frases memoráveis, produziu peças que fizeram história no teatro brasileiro, como “É...”, uma das obras mais famosas do escritor, que enveredou pelo caminho do teatro de resistência, como a crítica define o espetáculo “Liberdade, liberdade” (em coautoria com Flávio Rangel) e pelo chamado teatro do absurdo, como definida a peça “Um elefante no caos”.

Para internet, criou o site Millôr On-line, sobre o qual diria, posteriormente: “Se eu soubesse o que atrai tanta gente, nunca mais faria de novo.” Como bom roteirista, ainda escreveu sobre a própria vida: “Meu destino não passa pelo poder, pela religião, por qualquer dessas entidades idiotas. Meu script é original, fui eu quem fez. Por isso não morro no fim.”

Millôr Fernandes foi casado com Wanda Rubino Fernandes e tinha dois filhos, Ivan e Paula, e um neto, Gabriel. O artista morreu em casa, no bairro de Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro, no dia 27 de março de 2012. Sua obra, porém, ficou eternizada pela genialidade. Em 2013, foi inaugurada, no Arpoador, o “Largo do Millôr”, criado pelo arquiteto e urbanista Jaime Lerner, com uma escultura que traz a silhueta do artista, em desenho de Chico Caruso, sobre um banco de madeira.

No ano passado, para marcar os dez anos da sua morte, mais uma homenagem a um dos mestres da escrita e do humor, que deixou sua contribuição não apenas nas letras e nas artes, mas também nas areias cariocas. No dia 27 de maio de 2022, foi instalada uma placa no Largo do Millôr, no trecho em frente à faixa de areia onde se pratica frescobol. Millôr foi pioneiro nesse esporte, criado em Copacabana em meados dos anos 1940 e sucesso nas praias até hoje. Homenagear Millôr é manter viva a história carioca.


Frases



Seguem algumas frases antológicas do genial Millôr Fernandes:

“Abdômen: palavra machista significando barriga pra ambos os sexos. Deveria haver também abdmulher.”
“Aborígine é a maneira pejorativa dos conquistadores chamarem o dono da propriedade.”
“O B é um l que se apaixonou por um 3.”
“Dar mel não faz da abelha um ser superior.”
“Não se escreve com 11 palavras o que se pode escrever com 10 (a não ser que você seja americano e ganhe por palavra; aí a proposição deve ser invertida).”
“Todo homem nasce original e morre plágio.”
“Só uma coisa preenche tudo – o nada.”
“Um homem começa a ficar velho quando já prefere andar só do que mal acompanhado”.
“O coração tem imbecilidades que a estupidez desconhece”.
“Esnobar é exigir café fervendo e deixar esfriar”.
“Há certas mulheres que acabam ficando bonitas de tanto a gente dizer que são”
“Não há problema tão grande que não caiba no dia seguinte.”
“Clássico é um escritor que não se contentou em chatear apenas os contemporâneos.”
“A morte é compulsória, a vida não.”




Obras



Prosa

Eva sem Costela: Um livro em defesa do homem (1946)
Tempo e Contratempo (1949)
Lições de um Ignorante (1963)
Fábulas Fabulosas (1964)
Esta é a Verdadeira História do Paraíso (1972)
Trinta Anos de Mim Mesmo (1972)
Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr (1973)
Compozissõis Imfãtis (1975)
Livro Branco do Humor (1975)
Devora-me ou Te Decifro (1976)
Millôr no Pasquim (1977)
Reflexões Sem Dor (1977)
Novas Fábulas Fabulosas (1978)
Que País é Este? (1978)
Todo Homem é Minha Caça (1981)
Diário da Nova República (1985-1988)
Eros Uma Vez (1987)
The Cow Went to the Swamp ou A Vaca foi pro Brejo (1988)
Millôr Definitivo: A bíblia do caos (1994)
Crítica da Razão Impura ou O Primado da Ignorância (2002)
100 Fábulas Fabulosas (2003)
Apresentações (2004)
Novas Fábulas & Contos Fabulosos (2007)
Circo das Palavras (2007)
O Mundo Visto Daqui: Praça General Osório (2010)
A Entrevista (2011)


Poesia

Papáverum Millôr (1967)
Hai-kais (1968)
Poemas (1984)


Teatro

Uma mulher em três atos (1953)
Do tamanho de um defunto (1955)
Bonito como um deus (1955)
Diálogo da mais perfeita compreensão conjugal (1955)
Um elefante no caos (1962)
Pif, tac, zig, pong (1962)
Liberdade, liberdade (1965) |1|
Pigmaleoa (1965)
A viúva imortal (1967)
Computa, computador, computa (1972)
É... (1977)
A história é uma história (1978)
Os órfãos de Jânio (1979)
O homem do princípio ao fim (1982)
Duas tábuas e uma paixão (1982)
A eterna luta entre o homem e a mulher (1982)
Kaos (1995)”

Por Manoela Ferrari