Fevereiro, 2023 - Edição 288

O (in)vento da memória de Carlos Nejar

Nesta segunda edição de 2023, celebramos o passar dos anos do imortal Carlos Nejar, ilustre capricorniano, que completou 30.660 dias de vida, no dia onze de janeiro. Seguindo o fio de sua (intocada) memória, aliando sua vasta gama de conhecimento com a elegância de palavras sempre inspiradoras, Nejar reuniu mais de 100 textos inéditos na (imperdível) obra Crônicas de um Imortal, ou (In)vento para Não Chorar, lançada no final do ano passado, pela Ed. Bertrand Brasil. Os temas são variados – vão da política e sociedade à religião e literatura. As reflexões enfrentam o peso das perdas, reencontram a nostálgica infância e contemplam os mistérios do divino. Assumindo um tom de confissão, em uns, e de ficção em outros, o acadêmico agrupa recortes de toda sua trajetória, retratando sua ampla experiência de vida.

No prefácio da antologia, seu filho, o igualmente escritor, Fabrício Carpinejar, afirma: “Os textos seguem uma linha introspectiva de ‘memórias do pensamento’. Como se fosse um diário da vida intelectual, uma biografia das ideias. Os acontecimentos são internos, estalos da reflexão. Não tem como não sublinhar metade do livro. Carlos Nejar é um procurador de almas, desperta o espírito de cada coisa ou objeto que toca, na sinestesia da linguagem. Enxerga alma nas pedras, nas árvores, nos cavalos, nos riachos, nas montanhas, misturando o que leu com aquilo que sente. E nos põe a raciocinar de um jeito que nunca havíamos tentado antes: se o homem foi expulso do paraíso, agora, infelizmente, o homem expulsa o paraíso de dentro de si.”

Um dos mais relevantes escritores da atualidade, sua sensibilidade ímpar guarda o culto aos valores adquiridos, permitindo situá-lo no ápice de nossa literatura como sustentáculo do pensamento humanístico. Autor de romances, poemas, ensaios, contos, críticas literárias, traduções e literatura infantojuvenil, nas muitas falas de sua escrita intensa sobressai a visão poética, entre o encantamento e o mistério, costumeiramente envolta nas tradições e na realidade social dos pampas. Como, certa vez, doutrinou Tolstói (1828-1910) a um pintor: “Pinte a sua província e pintará o mundo.”



Único representante brasileiro na lista de grandes escritores da atualidade segundo a Quarterly Review of Literature, Nejar também figura entre os dez poetas mais importantes do Brasil pela revista World Literature Today. Lírico por excelência, sempre generoso com o leitor, o “Poeta dos Pampas” liga com o fio mágico de suas bem traçadas linhas o passado e o futuro. Há uma grande coerência em sua narrativa, mesmo que a distância temática ou cronológica evidencie a fragmentação. Estão intocadas as permanentes vocacionais do autor. Em suas memórias, não existe silêncio. A densidade da escrita evidencia o compromisso com o ofício de “fiar” o mundo. Desfiar para confiar. Velar para revelar. Assim como nos pampas gaúchos, ventar para inventar.



Imortal



Quinto ocupante da Cadeira nº 4 da Academia Brasileira de Letras, o “Poeta dos Pampas” foi eleito em 24 de novembro de 1988, na sucessão de Vianna Moog. Nascido em Porto Alegre (RS), no dia 11 de janeiro de 1939, fez sua formação primária, secundária e o curso clássico no Colégio do Rosário, na capital gaúcha. Formou-se, pela Pontifícia Universidade Católica do RS, em Ciências Jurídicas e Sociais (Direito), em 1962. Fez concurso para o Ministério Público do RS, assumindo a função em 1963, atuando em diversas comarcas pelo critério do merecimento. De 1965 a 1973, foi também professor de Português e Literatura em vários estabelecimentos estaduais de ensino.

Participou como membro da Comissão Julgadora do Concurso do Ministério Público; integrou o Conselho Superior e o Colégio de Procuradores do Ministério Público, tendo sido eleito por voto de sua classe para ser um dos sete procuradores que compõem o referido Conselho, órgão diretivo máximo da Instituição, em 1986, após atuar como suplente, no ano anterior. Nessa função, aposentou-se.

Em 1975, fez aperfeiçoamento jurídico em Lisboa, como bolsista, a convite do Ministério das Relações Exteriores de Portugal. Defendeu a tese “A Imputabilidade no Direito Criminal Português e Brasileiro” na Universidade de Lisboa, aprovada com parecer de louvor pelo professor de Direito Criminal dessa Universidade.

Em 1983, fez curso de aperfeiçoamento jurídico na Procuradoria da República, onde ficou sediado, a convite, participando como observador do Brasil no centro avançado de preparação de juízes e promotores de justiça. Exerceu a advocacia em Porto Alegre. Ao aposentar-se como Procurador de Justiça, mudou-se para o Espírito Santo, onde se radicou no seu “Paiol da Aurora”, em Guarapari. É cidadão, por títulos, de Vitória, Espírito Santo, Guarapari e Distrito Federal. Participou de inúmeros congressos nacionais e internacionais de literatura. De 1994 a 1996, foi nomeado para o Conselho Nacional de Política Cultural. Pertence à Academia Espírito-Santense de Letras, ao Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e à Academia Brasileira de Filosofia, no Rio de Janeiro.

Em 2000, inaugurou a Feira do Livro, em Porto Alegre, onde foi homenageado pelos 40 anos de vida literária, e esteve na Feira do Livro de Buenos Aires e no Congresso de Escritores de Veneza. De agosto a novembro, ocupou a presidência da Academia Brasileira de Letras (ABL).



No cinquentenário da publicação Quarterly Review of Literature, de Princeton, New Jersey (EUA), o poeta foi escolhido como um dos grandes escritores da atualidade. Em 2002, foi apontado entre os dez poetas mais importantes do Brasil, pela revista Literature World Today, Winter, Oklahoma, EUA. Detentor de inúmeros prêmios literários, Carlos Nejar é considerado um dos 37 poetas-chaves do século, entre 300 autores memoráveis, entre 1890-1990, pelo crítico suíço Siabenman, em Poesia y Poéticas Del Siglo XX em la América Hispana y el Brasil (Madri, 1997).

Com o espírito sempre aberto ao espetáculo da vida, a obra de Nejar permite a simplicidade com que realiza a incorporação do eterno ao contingente. Sua criação tem forma significante, que não aprisiona o significado. É, por outra parte, um gesto de exaltação ao gênero humano. Sua voz singular amplifica a pluralidade da existência. Não por acaso, o cineasta Júlio de Lellis brindará a legião de fãs do poeta lançando poemas gravados pelo próprio autor em podcasts, que já podem ser acessados a partir deste mês. Em sua poderosa escrita, Carlos Nejar não só rega as suas raízes, como também vence as adversidades, dando-nos a exata medida da dignidade do seu ofício. Como afirmou em seu discurso de posse na ABL, em 2012:
“Não aceitamos a mera contemplação. A mudança é a palavra. O ato de remover a pedra que Drummond, admiravelmente, visionou. E ver através dessa pedra levantada na luz da eternidade. Ver com ela e dentro de ‘um novo céu e uma nova terra, sem lembrança das coisas passadas’, como previu Isaías. A palavra pode elevar-se na luz e demorar-se em fulgor incandescente. Enfrentar o destino e mudar a sorte ou as coisas. Creio, sim, creio nesse mistério.”

O belíssimo discurso foi finalizado, citando Goethe (1749- 1832):
“Tudo é plenitude, quando o mistério arde. Queima a ânsia do homem diante da eternidade da palavra. E nos foi insuflada um dia, e florescemos. Sim, ninguém nos poderá mais impedir de florescer. Porque o amor foi sussurrado, e já estamos no futuro. Acontecimentos se acercam, e é preciso estar atento e de olhos completamente acesos. E escrevo minha gratidão pela vossa acolhida a esta Casa. ‘Aberta aos assombros’, onde ‘os dias, os anos / são palmos de nada’. Nômade é a linguagem. A Poesia é o instante nômade da eternidade. E chegamos. (Quando verdadeiramente chegaremos?) ‘Acabamos de chegar’ – registrou Goethe, no Segundo Fausto. ‘E não sabemos como foi’. [...] ‘Bastavos saber que aqui estamos’.”

Por Manoela Ferrari