Outubro, 2022 - Edição 284

Evanildo Bechara: “Uma vida entre palavras.”

Estamos no mês dos professores. Homenagear, em qualquer situação, os nossos mestres é uma questão de justiça. Temos, hoje, no Brasil, mais de 2,5 milhões de professores. Devemos ser gratos a esses heróis que transformam vidas e são dominados por belíssimos sonhos. Homens e mulheres, assim envolvidos, merecem o nosso mais profundo respeito.

Nesse sentido, reverenciar a trajetória do mais prestigiado filólogo da língua portuguesa é nossa obrigação contínua, não só para propagar o acervo riquíssimo sobre os estudos da linguagem humana, com especial relevo na língua de Camões e Machado de Assis, mas, sobretudo, como cidadãos brasileiros, para agradecer o imenso legado de sua profícua produção intelectual. “Um país se faz com homens e livros”, dizia, muito apropriadamente, Monteiro Lobato. Com efeito, não são muitos países que têm o privilégio de abrigar gênios como o professor Evanildo Bechara, eternizado nas páginas de suas obras, que multiplicam, com o esforço da sua inteligência e do seu trabalho, o imenso legado do estudo da língua de nossos antepassados.

Uma vida entre palavras


O professor, muito além de letras e números, transmite valores. Evanildo Bechara dedicou quase 75 anos de sua vida ajudando a desenvolver a inteligência reflexiva de seus alunos. Sua atividade investigatória sobre as singularidades do idioma inaugurou, em letra de forma, no ano de 1954, quando reuniu seus estudos iniciais no volume Primeiros Ensaios da Língua Portuguesa. Daí em diante, o que tivemos o privilégio de acompanhar é uma série inesgotável de obras que se tornaram textos canônicos sobre a língua portuguesa, tais como Lições de Português pela Análise Sintática (1960), já reeditada reiteradamente, assim como sua Moderna Gramática Portuguesa (1961), com feição nova a partir da 37ª edição, em 1999, a Gramática Escolar (2001) e o Novo Dicionário de Dúvidas (2016), entre outros tantos.

Neste ano, o destaque vem com o novo projeto editorial da Editora Nova Fronteira, que nos agraciou com uma seleção de textos em três volumes – reunidos na série Uma Vida entre Palavras – organizada pelo próprio autor, que conferiu organicidade ao mar temático por onde vem navegando por toda a vida.

Fatos e Dúvidas de Linguagem é o primeiro da série de três volumes, em que o professor Bechara apresenta investigações preciosas sobre temas sincrônicos e diacrônicos recorrentes da língua, oriundos, principalmente, de sua longa vivência em sala de aula.

A escola visa ao preparo do aluno para figurar não como mero espectador, senão como ator no cenário das relações sociopolíticas e culturais que o dia a dia da vida social proporciona. Nesse mister, o uso da língua, em texto oral e escrito, revela-se instrumento precioso para que sejamos ouvidos e considerados como cidadãos partícipes no seio da sociedade. A verdadeira pedagogia moderna, baseada nas ciências cognitivas do século XXI, mostra que não basta saber ler. Os jovens devem ter fluência na leitura e na interpretação crítica. Português é uma disciplina estruturante, que permite progredir nas outras, possibilitando aos alunos libertar a mente para outras atividades de ordem cognitiva. É impossível aplicar criativamente conceitos se não se conhecem esses conceitos. Não se pode saltar etapas.

A obra apresenta questões que interessam não apenas ao professor, sempre comprometido com a melhor estratégia pedagógica para fazer da aula de língua portuguesa um instrumento de formação cidadã, mas a todos os envolvidos na esfera educacional. Temas de grande interesse estão presentes nessa primeira seleção, tais como a etimologia, as normas linguísticas e suas aplicações, ortografia e prosódias normativa e variacionista, além de estudos esclarecedores sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Na apresentação, o historiador de mérito da linguística e da filologia, professor Ricardo Cavalieri, elogiou o conjunto de estudos preciosos, até então ocultos das páginas da história, com um autor polígrafo, que consegue tratar temas vários com elegância e erudição: “Este novo projeto editorial revela um leitor (Evanildo Bechara) atento e atualizado, que não hesita em ajustar antigos conceitos às conquistas que a ciência, inevitavelmente, obtém com o devir do tempo. Esta expressão de clarividência está, sem dúvida, entre os atributos que nos fazem reconhecer em Evanildo Bechara a excelência dos intelectualmente abastados.”


História da Língua Portuguesa


Fiel à pluralidade temática, Análise e História da Língua Portuguesa é o segundo volume da série Uma Vida entre Palavras. O livro tem como foco as diferenças – tanto as mais tênues quanto as mais perceptíveis – do idioma. Em linguagem clara, que aproxima o leitor do fato linguístico, seu caráter diversificado e abrangente cativa todos os tipos de leitor, desvendando as idiossincrasias da língua. Neste sentido, trabalhos como Sejam bem-vindos os consultórios gramaticais, O estrangeirismo e a pureza do idioma, Repasse crítico da gramática portuguesa e Sobre a sintaxe dos demonstrativos são essenciais.

Entre os textos relevantes, destacamos, também, O Natal em línguas do mundo, Por que segunda-feira em português?, Última Flor do Lácio, Inovações sintáticas no português moderno e Português ou brasileiro?, que nos conferem estímulo para aprofundar a compreensão do nosso idioma.


Mestres da Língua


O terceiro volume da coletânea – Mestres da Língua – dedica-se, majoritariamente, ao relato das contribuições que grandes nomes da filologia e da linguística transmitiram às gerações que lhes sucederam e permanecem como um legado para a história do saber sobre a linguagem humana. Não faltam nomes ilustres, como Herculano de Carvalho (1924-2001) – A contribuição de Herculano de Carvalho aos estudos linguísticos –, Eugênio Coseriu (1921-2002) – “Eugênio Coseriu” –, que, em companhia de Manuel Said Ali (1861-1953) formam a base tridimensional do pensamento linguístico em Evanildo Bechara, nomeadamente a que se percebe na 37ª edição e seguintes da Moderna Gramática portuguesa.

Também são incluídos no terceiro volume referências paradigmáticas como formadores de opiniões, tais como Harri Meier e seus estudos de língua portuguesa, Lendo os cadernos de Mário Barreto, Othon Moacyr Garcia – seu labor científico, Celso Cunha, um filólogo dos que se separam e Antonio Houaiss: influências e afinidades no seu labor linguístico-filológico. Como nos lembra o professor Cavalieri, na apresentação, Bechara é um linguista que percorreu – e ainda percorre – várias fases da mudança por que passa a linguística como ciência a partir da chegada do modelo estruturalista ao Brasil, fato que lhe conferiu uma capacidade única para enxergar a face interna da língua sob vários ângulos.

Por outro lado, como explica Cavalieri, a formação filológica que já se percebe nos primeiros passos da trajetória de Bechara – e ainda o acompanha – impõe ao seu trabalho um compromisso com o texto. Sua concepção de descrição linguística esteia-se no princípio da unicidade do objeto: “O perfil filológico de Evanildo Bechara não poderia olvidar a ligação íntima entre o estudo da língua e o da literatura, de que resultam textos preciosíssimos em que sua aguda percepção dos fatos da língua vernácula contribui para melhor compreendermos e interpretarmos peças da literatura clássica e contemporânea”, afirma Cavalieri. É nessa linha que se deve ler os trabalhos que ocupam as páginas do terceiro volume, entre eles os estudos A erudição de Camões, José de Alencar e a língua do Brasil, Manuel Bandeira e a língua portuguesa e Particularidades da linguagem em Machado de Assis.


Genialidade viva


Em 2006, ao situar o professor Evanildo Bechara entre os “cem brasileiros geniais vivos”, o jornal O Globo não cometeu nenhum exagero. Nascido em Recife (PE), no dia 26 de fevereiro de 1928, Evanildo Cavalcante Bechara transferiu-se para o Rio de Janeiro, aos 11 anos. Desde cedo, mostrou vocação para o magistério, que o levou a cursar Letras (modalidade Neolatinas), na Faculdade de Filosofia do Instituto La-Fayette, hoje UERJ. Aos dezessete anos, escreveu seu primeiro ensaio, Fenômenos de Intonação, publicado em 1948, com prefácio do filólogo mineiro Lindolfo Gomes. Em 1954, foi aprovado em concurso público para a cátedra de Língua Portuguesa do Colégio Pedro II e reuniu, no livro Primeiros Ensaios de Língua Portuguesa, artigos escritos entre os dezoito e vinte e cinco anos, saídos em jornais e revistas especializadas.

Concluído o curso universitário, vieram-lhe as oportunidades de concursos públicos, que fez com brilho, num total de onze inscritos e dez realizados. Aperfeiçoou-se em Filologia Românica, em Madri, com Dámaso Alonso, nos anos de 1961 e 1962, com bolsa oferecida pelo Governo espanhol. Doutorou-se em Letras pela UEG (atual UERJ), em 1964.

Convidado pelo Prof. Antenor Nascentes para seu assistente, chegou à cátedra de Filologia Românica da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UEG (atual UERJ), em 1964. Foi professor de Filologia Românica do Instituto de Letras da UERJ, de 1962 a 1992, e professor de Língua Portuguesa do Instituto de Letras da UFF, de 1976 a 1994.

Foi também professor titular de Língua Portuguesa, Linguística e Filologia Românica da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques, de 1968 a 1988, além de professor de Língua Portuguesa e Filologia Românica em IES nacionais e estrangeiras.

Em 1971-72, exerceu o cargo de professor titular visitante da Universidade de Colônia (Alemanha) e, de 1987 a 1989, igual cargo na Universidade de Coimbra (Portugal). É professor emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994) e da Universidade Federal Fluminense (1998). Autor de duas dezenas de livros, entre os quais a Moderna Gramática Portuguesa, amplamente utilizada em escolas e meios acadêmicos, e diretor da equipe de estudantes de Letras da PUC-RJ que, em 1972, levantou o corpus lexical do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, sob a direção geral de Antônio Houaiss.

Seu currículo se estende, ainda, como orientador de dissertações de Mestrado e de teses de Doutoramento, membro de bancas examinadoras de concursos públicos para o magistério superior em várias instituições. Foi diretor do Instituto de Filosofia e Letras da UERJ, de 1974 a 1980 e de 1984 a 1988; secretário-geral do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro, de 1965 a 1975; diretor do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, de 1976 a 1977; membro do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro, de 1978 a 1984; chefe do Departamento de Filologia e Linguística do Instituto de Filosofia e Letras da UERJ, de 1981 a 1984; chefe do Departamento de Letras da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques, de 1968 a 1988.

Membro titular da Academia Brasileira de Filologia, da Sociedade Brasileira de Romanistas, do Círculo Linguístico do Rio de Janeiro. Membro da Société de Linguistique Romane (de que foi membro do Comité Scientifique, para o quadriênio 1996-1999) e do PEN Club do Brasil. Sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra (2000), foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 11 de dezembro de 2000. Criou a Coleção Antônio de Morais Silva, para publicação de estudos de língua portuguesa, e é membro da Comissão de Lexicologia e Lexicografia e da Comissão de Seleção da Biblioteca Rodolfo Garcia.

Entre centenas de artigos, comunicações a congressos nacionais e internacionais, Bechara escreveu livros que já se tornaram clássicos, pelas suas sucessivas edições. Atualmente, ele se empenha na elaboração do Dicionário Machado de Assis.

Foi eleito, por um colegiado de educadores do Rio de Janeiro, com apoio da Folha Dirigida, uma das dez personalidades educacionais de 2004 e 2005. A convite da Nova Fronteira, integra o Conselho Editorial dos diversos volumes do Dicionário Caldas Aulete.

Em 2008, pela passagem de seus 80 anos, recebeu, como homenagem, uma miscelânea intitulada Entrelaços entre Textos, cuja organização, coube ao Professor Doutor Ricardo Cavaliere. Ainda em 2008, foi lançada, também pela Nova Fronteira, 80 anos Homenagem: Evanildo Bechara, obra que aborda a trajetória do professor, gramático e escritor por meio de observação de colegas, alunos, amigos e admiradores.

Fonte que criou suas próprias águas, absorvendo legados recebidos, longe de ser apenas uma memória viva, o imortal Evanildo Bechara, aos 94 anos, segue em impressionante atividade, constituindo-se num exemplo de plenitude do exercício da profissão. Todas as homenagens, portanto, fazem jus à trajetória de um dos maiores gênios da língua portuguesa.

Por Manoela Ferrari