Novembro, 2020 - Edição 261

Personalidade do ano

A pneumologista Margareth Dalcolmo, pioneira no tratamento de pacientes de Covid-19 no Brasil, foi a vencedora do Prêmio Yedda Maria Teixeira, na categoria Personalidade do Ano. A premiação, uma iniciativa da Associação dos Embaixadores do Turismo no Rio de Janeiro, foi marcada para o dia 8 de novembro, de forma virtual, por meio da plataforma Zoom. Uma das pneumologistas mais experientes do Brasil, a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) alia conhecimento e sabedoria à elegância de expressão oral e pessoal, o que a tornou uma referência nos assuntos ligados à crise sanitária.

Defendendo a Ciência com veemência, perseverante nas pesquisas, firme nas atitudes, a médica capixaba, radicada no Rio de Janeiro, é amplamente admirada – tanto no meio acadêmico, entre seus colegas, no consultório, entre seus pacientes, ou entre amigos, na mesma medida. Sua conduta no exercício da atividade médica é marcada pela dedicação, com um trabalho sério e competente. Em todas as atividades desempenhadas ao longo da carreira, sempre demonstrou zelo, firmeza e eficiência. Desde o início, esteve ligada ao serviço público, exercendo diversos cargos locais e nacionais. Foi a mais jovem diretora de um hospital público federal – o Hospital Rafael de Paula Sousa, do Ministério da Saúde – função que desempenhou por quatro anos.

Com graduação em Medicina pela Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (1978), Residência Médica em Pneumologia, Especialização em Pneumologia Sanitária pela FIOCRUZ em 1981; e doutorado em Medicina (Pneumologia) pela Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (1999), foi presidente da Sociedade de Pneumologia e Tisiologia do Rio de Janeiro por quatro anos, e secretária executiva da Primeira Comissão Antitabagista do Brasil. É membro de três sociedades médicas internacionais.

No mundo acadêmico, tem participação brilhante com atividades no país e no exterior, atuando, por diversas vezes, na área de sua especialidade médica, como consultora do Ministério da Saúde, da Organização Panamericana de Saúde, da Organização Mundial de Saúde. Primeira médica brasileira convidada para um Congresso no Irã, país de fé islâmica, participou de inúmeras conferências no Brasil e no exterior. Integra dois comitês científicos nacionais e um internacional.

Margareth Dalcolmo tem vários trabalhos científicos publicados em revistas médicas brasileiras e internacionais. Colaborou na elaboração de três manuais e dez livros de texto. Em todas as atividades acadêmicas, demonstrou brilho e competência, associados a um estilo apurado de apresentação. De seus trabalhos escritos, destaca-se a tese de doutoramento na Escola Paulista de Medicina, sobre o tratamento da tuberculose, aprovada com louvor em abril do ano 2000. A tese da pneumologista representa um marco referencial sobre o tema, tal a amplitude e a qualidade do trabalho concluído.

Em entrevista ao acadêmico Arnaldo Niskier, que também acaba de ser agraciado com o Prêmio Yedda Maria Teixeira, na categoria “Empreendedorismo”, a médica capixaba se mostra otimista em relação ao desenvolvimento de vacina em busca da prevenção ao novo coronavírus.

Por Manoela Ferrari




A solução é a vacina



Arnaldo Niskier: No programa “Identidade Brasil”, do Canal Futura, entrevistamos a Dra. Margareth Dalcolmo, que talvez seja a maior especialista brasileira em matéria de pandemia. Ela começou fazendo medicina na Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de Vitória, ES. Depois fez doutorado na Escola Paulista de Medicina e tem demonstrado grande competência nos trabalhos realizados como pesquisadora na Fundação Oswaldo Cruz. O que é exatamente essa doença e o que isso representa?

Margareth Dalcolmo: A Covid-19 chegou a nós, no Ocidente, vinda da China, como uma pneumonia diferente, grave. Matava pessoas e deixava as pessoas, rapidamente, evoluírem para um quadro grave, irem para ventilação mecânica, CTI...

Arnaldo Niskier: A origem é mesmo o morcego?

Margareth Dalcolmo: É. Em primeiro lugar, temos que considerar todas as bobagens que o ser humano tem feito contra o planeta. Esse é mais um que migrou do mundo animal para os seres humanos, atravessou a barreira humana, é originário, sim, dos morcegos. Os morcegos vivem aglomerados aos milhões, em cavernas, e são grandes e conhecidos portadores. Há quase um milênio que se sabe, pelos estudos de genoma, que os morcegos são portadores de muitos vírus. Eles vivem aglomerados e têm uma característica que é a temperatura corporal mais alta, até para poder voar. Tudo isso confere a esses bichos uma característica muito peculiar. Eles alcançaram seres humanos através de um pequeno mamífero, um bichinho que parece o tatu brasileiro, que chamam pangolim. Todos esses animais são muito frequentes naqueles mercados ditos molhados da China. Conheço bem esses mercados, em várias cidades da China e realmente...

Arnaldo Niskier: A senhora já esteve lá?

Margareth Dalcolmo: Várias vezes. Já vi em Pequim, já vi em Xangai, já vi no interior da China, na província de Iunã. O de Wuhan não conheço, porque nunca estive lá, mas estive em Chengdu. Todas têm esses mercados, porque eles comem esses animais ditos exóticos. Esses animais ficam lá mortos e vivos, tudo misturado, então, tem sangue, secreções e aquilo tudo propicia uma transmissão de muitos vírus. São esses animais que atravessaram a barreira humana e nos trouxeram o coronavírus. Ele é da família dos coronavírus, que são nossos velhos conhecidos, coronavírus do bem, se podemos dizer assim, que são responsáveis pela grande maioria dos resfriados que temos ao longo do ano. Essa doença chegou a nós como sendo uma pneumonia grave e, rapidamente, entendemos que não era só isso. Na verdade, é uma doença sistêmica, capaz de comprometer todos os órgãos do corpo humano, caracterizada por um processo inflamatório que compromete todos os vasos. Tem uma característica, que chamamos trombogênese, que faz trombos, causa embolia, obstrui a circulação na microcirculação. Isso não só no pulmão como em vários órgãos e, por isso, que é tão grave, por isso que muita gente morreu no início. O doente internava com saturação de oxigênio (que é aquela que medimos no dedo da mão), falando normalmente, e, rapidamente, entrava com insuficiência respiratória e estava entubado. O que explicava essa chamada hipóxia silenciosa? Era a obstrução de vasos, era a trombose. Aprendemos isso e passamos a tratar os pacientes, fazendo anticoagulação, que é o que todo mundo tem que receber, sobretudo quando está mais grave. Então, é uma doença sistêmica, nem sempre se apresenta por uma pneumonia e que pode ser, na maior parte das vezes, leve ou moderada ou, algumas vezes, muito grave, ocorrendo a mortalidade que sabemos que varia, mas pode ser muito alta como foi no Brasil.

Arnaldo Niskier: Na sua opinião, existe a possibilidade de ser controlada em tempo curto?

Margareth Dalcolmo: Há um esforço mundial para isso. O que poderia estar melhor, digamos assim, comparando nosso país com outros países que controlaram a epidemia. A doença é grave, se dissemina muito fácil, é preciso que todos entendam que não estamos falando de alguma coisa que passa de uma pessoa para outra e, sim, de uma doença que passa de uma para várias outras. E isso é que faz com que a Covid-19 seja tão grave do ponto de vista epidemiológico. Ela realmente atinge pessoas que têm determinados fatores de risco e a idade é um deles, outras doenças e condições predispõem ao agravamento. Como é uma virose respiratória, temos certeza de que haverá de ser controlada. Em determinado momento, ela será controlada como todas que a antecederam o foram, só que nenhuma foi tão pandêmica. Desde a gripe espanhola de cento e poucos anos atrás, não temos um quadro tão pandêmico quanto o Sars-CoV-2.

Arnaldo Niskier: Fala-se em três, quatro, cinco, seis vacinas que já estariam em estudos e em exames, em provas aqui no Brasil. Gostaria que fizesse pequena análise sobre essas vacinas e a possibilidade de acabarem com essa pandemia. O que existe de concreto em relação a isso?

Margareth Dalcolmo: A melhor solução para as viroses respiratórias e para todas as viroses agudas é vacina, sempre foi. Tudo se resolve com vacina em detrimento de uso de medicamentos. É claro que o investimento hoje é muito justificado na busca da vacina. Há uma corrida enorme, mais de 150 grupos pesquisando vacinas. Há 16 já em fase clínica de testagem e, no Brasil, já temos várias vacinas sendo testadas em fase 3. A mais avançada é chamada AstraZeneca modelo Oxford, que está sendo produzida pela Fundação Oswaldo Cruz, chancelada pelo Ministério da Saúde. É uma vacina diferente da chinesa, da empresa Cinovac, também em um processo de transferência de tecnologia, será fabricada pelo Instituto Butantã, em São Paulo. Ambas estão em fase 3 no Brasil, são vacinas diferentes. A chinesa opera com modelo de vírus acumulado e a vacina da AstraZeneca trabalha utilizando como vetor da vacina, um adenovírus vindo dos chimpanzés. São vacinas diferentes, parecem ser muito boas, estamos muito otimistas com o desenvolvimento das fases 3 dessas vacinas. O que ocorreu, recentemente, com a interrupção, muitas pessoas nos perguntam, é uma coisa completamente normal. Quando ocorre um efeito chamado inesperado (chamamos efeito inesperado ou adverso ou adverso inesperado grave), isso leva à interrupção definitiva ou temporária. Nesse caso, o que aconteceu foi um excesso, diria, de cuidado, até porque a pressão política é muito grande, a opinião pública nesse momento é muito grande...

Arnaldo Niskier: Uma paciente apresentou problemas neurológicos. Não necessariamente eram devidos à vacina, ou eram?

Margareth Dalcolmo: É possível até que seja, isso não está completamente elucidado, porque sabemos que a mielite transversa é um efeito colateral que pode ocorrer derivado da vacina, sendo só pela vacina ou porque a pessoa é portadora de uma condição predisponente neurológica. Pode ter, por exemplo, esclerose múltipla e nem saber que tem, então isso pode ocorrer nos voluntários. De modo que o patrocinador, a própria AstraZeneca, se antecedeu aos chamados grupos de segurança, que têm total autonomia para interromper qualquer estudo clínico, em qualquer lugar do mundo, a qualquer momento. Esses grupos analisaram o caso, fizeram a relação causa efeito e liberaram os estudos para continuar, de modo que estamos muito tranquilos, o Brasil está numa posição boa, vamos ter a vacina no Brasil...

Arnaldo Niskier: Em quanto tempo?

Margareth Dalcolmo: Ano que vem, 2021.

Arnaldo Niskier: Essa história da vacina russa é um pouco otimista demais?

Margareth Dalcolmo: Quanto à vacina russa, não posso fazer a mesma análise, tendo em vista o pouco conhecimento dela, embora se saiba que foram publicados resultados das fases 1 e 2. A fase 3, que é absolutamente indispensável para registro e aprovação de qualquer vacina, precisa ser feita para que possamos falar. Os russos têm muita tradição nesse tipo de produção. Minha impressão é a de que talvez tenhamos uma outra vacina, e a nossa expectativa é que esse mercado produzirá muitas vacinas, que serão colocadas para comercialização ou, no caso do Brasil, estamos fabricando a vacina modelo Oxford no sentido humanitário.

Arnaldo Niskier: A vacina de Oxford está sendo feita em parceria com o Rio de Janeiro.

Margareth Dalcolmo: A vacina fase 3 quem está desenvolvendo é a Universidade Federal de São Paulo. À Fiocruz, cabe a produção da vacina. Temos um acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca para produzir milhões de doses. Vamos entregar ao Ministério da Saúde os primeiros lotes de 30 milhões de doses até janeiro de 2021, já para aplicação. Depois de feito o registro regulatório na Anvisa, que é nosso órgão a quem temos que registrar qualquer produto biológico a ser utilizado, a vacina será incorporada ao calendário do SUS. Então, certamente, serão definidos os grupos mais vulneráveis que serão os primeiros a serem vacinados.

Arnaldo Niskier: A senhora é favorável a volta às aulas de imediato?

Margareth Dalcolmo: Não. Já tive muitas oportunidades de conversar sobre isso, inclusive com o Ministério Público do Rio, de São Paulo, com escolas, com faculdades, a situação está muito complexa. Se fôssemos responder pela diferença, digamos assim, há determinadas instituições privadas, sobretudo, que teriam condições de serem reorganizadas em seus espaços, tempos, para abrir com relativa segurança. Redefinição do espaço, número de alunos numa classe, distância das carteiras, colocação de divisória acrílica, utilização de máscara o tempo todo, fechamento de bebedouros, interdição de vestiários para não causar aglomeração. E há escolas que têm espaços físicos que permitem oferecer quase 80% das aulas ao ar livre ou em quadras abertas, ventiladas. É muito difícil dizer de maneira geral. De novo, a desigualdade vai se impor.

Arnaldo Niskier: Gostaria de ouvir sobre os problemas brasileiros em relação à tuberculose.

Margareth Dalcolmo: Muito triste reconhecer que a Covid-19, além de ser uma epidemia muito grave, já estamos a praticamente 8 meses de doença... O fato é que o impacto dela sobre as doenças crônicas foi muito grande, a tuberculose é apenas um dos exemplos. Sobre o câncer, por exemplo, o impacto foi enorme, o número de pessoas que deixaram de completar seus exames pré-operatórios, como o câncer de mama, câncer de próstata, que são muito comuns... Seguramente muitas pessoas vão pagar com as próprias vidas por isso. Na tuberculose, o impacto também não foi pequeno, já sabemos os dados oficiais, 40% a menos de exames feitos para diagnóstico de uma doença absolutamente benigna, tratável. Isso tem um impacto enorme de uma doença ainda tão prevalente no Brasil. E mais que isso. Há pacientes portadores de doenças pulmonares crônicas, doenças cardiovasculares, que eventualmente deixaram de ser atendidas com a regularidade e eficiência que mereceriam. Então, sem dúvida, o impacto que chamaria de secundário, não que seja menos importante, mas o impacto paralelo da Covid-19 é catastrófico no Brasil.

Arnaldo Niskier: Isso que nos faz sofrer muito, porque não é só a existência de nossa permanência em casa para fazer esse isolamento, mas é também prejuízo de modo geral para o país, a economia fica grandemente prejudicada. Na sua opinião como especialista, iremos atingir o chamado “novo normal” no ano que vem, em que mês aproximadamente?

Margareth Dalcolmo: Não sou muito simpática a esse termo, porque não podemos chamar exatamente normal do ponto de vista humanitário, sobretudo no Brasil, pelas marcadas diferenças sociais de acesso. O Brasil não teve essa forma de montanha, de curva que alcançou o pico e desceu, rapidamente, como os países europeus. O Brasil alcançou o pico e permaneceu num platô ainda muito alto que declina lentamente, mas declina. Temos que fazer todos os esforços, termos paciência, entendermos que não somos só, que o distanciamento social ainda é grande arma, tendo em vista a transmissibilidade. Existe um termo e um indicador, que é o chamado R, que é a taxa de transmissibilidade. Angela Merkel, na Alemanha, explica isso lindamente. Quando a taxa está acima de 1, é ruim. Lisboa acaba de fechar tudo de novo com medo de uma segunda onda. A Europa abriu, em pleno verão, e agora está pagando o preço no aumento de casos. Não é que haja uma segunda onda, mas pode haver. Temos que fazer todos os esforços coletivos e individuais para que isso não ocorra, até que chegue a vacina, que tenhamos alcançado uma determinada proporção de pessoas que, por força de terem tido a Covid-19 ou o contato, tenham desenvolvido alguns anticorpos, que é o resultado desses estudos epidemiológicos, como é de Covid-19, mostrando que há determinadas áreas no Brasil onde já tem mais ou menos 20% de pessoas protegidas. O mundo ideal seria, concluindo, se vamos ter vacinas que vão garantir uma proteção de aproximadamente 55%, 60%. Se isso se soma a uma certa imunidade comunitária de uns 20%, em média, vamos ter a interceptação da cadeia por transmissão sem dúvida e a epidemia vai arrefecer. Acho que temos que contar com essa possibilidade para ano que vem. Do ponto de vista epidemiológico, é o esperado. Agora, todos têm que continuar contribuindo. O problema é de muita complexidade, extrapola a doença em si.

Arnaldo Niskier: Vamos ter que continuar usando máscara, manter o distanciamento. O curioso é que tem gente que não acredita em nada disso. Passamos pela praia no sábado, no domingo, está cheia de gente, de certa maneira se arriscando numa coisa completamente fora de sentido.

Margareth Dalcolmo: É a vida dos outros, porque quando usamos uma máscara não estamos só nos protegendo, estamos protegendo as pessoas que gostamos. A máscara é a barreira mecânica que protege a todos.

Arnaldo Niskier: É o que vocês técnicos, especialistas, médicos, cientistas chamam de protocolos. Temos que levar em conta, acima de tudo, o cumprimento desses protocolos.