Setembro - 2022 - Edição 295

100 Millôr No dia 16 do mês passado, Millôr Fernandes foi timidamente lembrado por seu centenário. Se Jorge de Salles aindaestivesse entre nós, com certeza a data não passaria em branco e teríamos uma daquelas monumentais exposições retrospectivas que só o Jorge sabia realizar. Aqui no Rio de Janeiro, apenas o jornal O Globo, em sua edição do dia 6, no artigo “Cabeça de Gênio”, de Bolívar Torres, editou uma interessante matéria com duas páginas abrindo a capa do Segundo Caderno do diário, quando noticiou sobre a reedição de alguns dos livros do artista, além do lançamento de um site e a volta de uma peça teatral. Além disso, alguns cartunistas e jornalistas, amigos e fãs do humorista, também postaram homenagens em suas redes sociais exaltando o importante centenário, mas nada de mais significativo aconteceu, nenhum evento de fato. São sintomas de uma pandemia que ainda parece estar entre nós, especialmente no meio cultural.

Não cheguei a conhecer Millôr Fernandes como eu gostaria, mas, em 2008, por conta de uma pesquisa que estava fazendo, precisei da ajuda dele para a obtenção de uma caricatura, o que acabou rendendo uma interessante recordação. Eu estava iniciando contatos com alguns herdeiros de Mário Rodrigues, clã de Nelson, Mário Filho e Jofre. Meu interesse era tentar descobrir detalhes sobre Irene Rodrigues, irmã mais nova dos três citados.

Irene foi uma das nossas mais interessantes caricaturistas, com ótimas artes publicadas na revista Diretrizes, de Samuel Wainer, tendo também atuado como repórter do lendário Jornal dos Sports, cobrindo especialmente eventos e torneios de tênis. Irene foi casada com o cinegrafista Francisco Torturra, que se consagrou registrando lances magistrais do futebol carioca, no Maracanã, para o Canal 100.

Quando estive na residência de Irene Rodrigues, encontrei uma senhorinha já bastante idosa e se recuperando de um acidente vascular cerebral. Fui muito bem recebido por seu gentil esposo, Francisco Torturra, e suas filhas, Margarida e Claudia, que me contaram algumas histórias sobre Irene e os Rodrigues, mas fiquei bastante decepcionado ao saber que a família não possuía quaisquer das artes que Irene produziu nos seus melhores tempos de desenhista de humor. “Ao longo dos anos, as tragédias que atingiram a família, muitas mudanças de endereço, muita coisa se perdeu”, explicou Francisco enquanto me mostrava algumas fotos e recortes sobre seu trabalho. O acervo que eles possuíam sobre Irene praticamente se resumia em algumas fotografias de reuniões entre parentes próximos, mas nenhum de seus ótimos desenhos.

Bruno Torturra, filho de Claudia, que estava presente neste primeiro encontro, amainou minha decepção ao informar que sabia onde eu poderia encontrar um original desenhado por sua avó caricaturista. Bruno seguiu os passos de seu bisavô Mário Rodrigues, de seus avós e tios, e tornou-se jornalista. Naquele momento, o jovem Torturra informou que, em 2006, havia realizado uma entrevista com o Millôr Fernandes para a revista Trip e, ao saber das origens do jovem repórter, o entrevistado comentou que, quando frequentava a residência dos Rodrigues, foi “vítima” do lápis humorístico de Irene.

Millôr exibiu a rara arte ao novato colega que, sem perder tempo, fez um registro fotográfico com uma dessas maquininhas digitais. Bruno me mostrou a foto, que ainda estava na máquina, obviamente um registro interessante, porém precário para arquivo. Resolvi então, eu mesmo ir atrás do Millôr e ver se ele me permitiria fotografar ou digitalizar a caricatura desenhada por Irene.

Foram semanas tentando conseguir os telefones do Millôr. Solicitei a vários colegas cartunistas e amigos jornalistas, mas não consegui nada. Alguns diziam que Millôr era de difícil trato, muito temperamental e que não gostava que passassem seus telefones a estranhos. Na época, Millôr editava um espaço no portal UOL com seus textos e frases; quando visitei sua página, havia uma caixa no cantinho do site onde se lia: “Fale com o Millôr.” Sem muita fé que realmente o colunista leria qualquer recado deixado ali, resolvi arriscar e enviei uma mensagem explicando sobre meu interesse em ver de perto a curiosa caricatura desenhada por Irene. Dois dias depois, surpreendentemente, recebi na minha caixa de e-mails uma mensagem do Millôr que solicitava minha presença na portaria de um edifício residencial, em Ipanema.

No horário combinado, estive no local e fui atendido por um funcionário do condomínio. Ao me identificar, me foi entregue um envelope em formato grande, aproximadamente com 60cm. Dentro dele, estava lá, uma cópia em tamanho original da histórica caricatura, fac-símile, em papel couché, um capricho só! Junto à reprodução, veio um bilhete escrito à mão que dizia: “Está aí, José Roberto. Nós dois tínhamos vinte anos. Eu, já um velho jornalista. Espero que sirva.” Apesar de não ter sido um encontro presencial, foi marcante e satisfatório, e a atitude do Millôr em me atender gentil e rapidamente desmistificou a balela de pessoa difícil.

Semanas depois, estive novamente na residência dos Rodrigues, e levei uma cópia da caricatura em formato menor para Irene ver. Devido à idade avançada e sua condição de saúde, a artista alternava momentos de lucidez e distração e, ao observar o desenho que ela mesma criou, disse que não recordava daquela arte e perguntou: “É meu mesmo? É bom, não é?” Depois de tecer rápidos comentários sobre Millôr, e lembrar que ele era um galanteador incorrigível, ela riu e se deixou fotografar timidamente próxima à caricatura.

Millôr Fernandes faleceu no dia 28 de março de 2012, aos 88 anos; e Irene Falcão Rodrigues, a última da prole dos talentosos filhos de Mário Rodrigues, morreu no dia 5 de maio de 2014. Boas lembranças de Millôr, Irene e os Rodrigues, pessoas que construíram muito das artes, da cultura e do jornalismo brasileiro.

Saúde e Arte!