Março, 2024 - Edição 299

Gritos no semáforo

Era uma tarde de sol, de céu azul profundo e calmo, por volta das 15h30 quando o sinal fechou para os carros e a minha bicicleta. Parei e logo percebi que, do outro lado da avenida, uma criança chamava a atenção da mãe que vendia balas no semáforo. Como ela não conseguia ouvir por conta do barulho dos motores e porque estava tentando resgatar os pacotes de balas depositados nas janelas dos carros antes que o sinal abrisse de novo, a criança, então, começou a gritar bem alto. Olhei fixo para os olhos daquela criança, e o seu olhar denunciava que aqueles gritos eram motivados pela fome que ela estava sentindo àquela hora do dia. Houve um hiato entre o meu olhar e aqueles gritos: um instante de silêncio e reflexão e, mesmo depois que o semáforo abriu, eu continuei ali parado, paralisado pelo eco daquela voz infantil e inocente. Após alguns instantes, subi na bike e voltei a pedalar. Porém, os gritos daquela criança faminta ainda ecoavam em minha mente. E durante todo o percurso até a minha casa fui pensando nos milhões de gritos que se espalham pelo universo todos os dias, todas as horas, minutos e segundos. O Planeta está gritando: gritam os céus em chuvas ácidas; gritam os campos em secas plantações; gritam o mar e os rios poluídos; gritam as flores e os insetos e as plantas sufocadas pelos agrotóxicos; gritam as matas e florestas consumidas pelos desmatamentos e as labaredas do fogo; gritam os oceanos, os ursos polares, as baleias e os pinguins que sofrem com o derretimento das calotas polares e o aquecimento global... A vida humana também está gritando – grita cotidianamente em imagens e fatos reais.
Afinal, o tiroteio é um grito; um pai desempregado é um grito; uma bala perdida é um grito; a violação dos Direitos Humanos é um grito; o feminicídio é um grito; a exploração sexual é um grito; o trabalho escravo é um grito; o tráfico humano é um grito; o racismo é um grito; a guerra é um grito dentro de outros gritos... Homens e mulheres gritam em seus silêncios, em seus pesadelos, em suas solidões, em suas orações... A toda hora estamos gritando e não nos ouvem ou não querem nos ouvir. A toda hora estão gritando e nós não ouvimos ou fingimos não ouvir. São berros, são brados, são reclamações..., mas também são pedidos de ajuda, de apoio, de um ombro amigo, de uma conversa, de uma reconciliação, de um abraço, um olhar, um afago na alma... ou simplesmente uma vida chamando a atenção de outras, como a daquela vida infantil gritando no semáforo.
Um grito é o som de voz agudo, elevado, emitido com esforço para chamar alguém, pedir socorro ou exprimir sensação de dor, espanto, raiva, alegria ou qualquer outra emoção forte. Mas quantos gritos acabam morrendo dentro do próprio peito? Presos dentro de bocas que não se abrem por medo de mais uma vez não serem escutadas? Clamores que são reprimidos ou se tornam indiferentes a tanta gente de boa audição?! Gente que ignora a dor do outro, o chamado do outro, o som do outro, a fala do outro, a voz do outro, a presença do outro, os gritos do outro e prefere continuar surda e mumificada na imobilidade garantida dos que nada fazem, por comodismo, por omissão ou porque já se tornara insensível a si mesma e ao próximo. Todos gritam, independentemente da classe social, sexo, religião, cor da pele... Somos humanos em estado bruto de dores e amores, alegrias e tristezas, sabedoria e ignorância, compaixão e agressividade... sendo lapidados muitas vezes por gritos inconscientes que ecoam por meio da arte, da literatura, da música, da escultura... Gritar é uma necessidade humana. E por mais que sejamos adultos, viver no mundo exige que muitas vezes, na esperança de sermos ouvidos, gritemos como uma criança chamando por sua mãe em algum semáforo da vida.

Por Peilton Sena, membro da Academia Santista de Letras e da ALAPG.