Março, 2024 - Edição 299

A Rebelião dos Canários

Os mineiros tinham, até bem adiantado o século XX, uma técnica infalível para se protegerem nas profundidades da rocha: os canários.

A pequena ave, mais sensível que o homem à falta de oxigênio e aos gases tóxicos, morreria primeiro que estes se nas minas houvesse gases venenosos ou demasiado monóxido de carbono. Se os mineiros vissem os canários morrerem ou asfixiarem-se, sabiam que deviam abandonar a mina a toda velocidade. O canário era o primeiro que sofria por um mal que acabaria por matar a todos.

Em Skopje, na ex-Iugoslávia, encontrei certa vez um ancião que havia sobrevivido à história eriçada de guerras de seu país. Contou-me o segredo de sua sobrevivência: “Quando os judeus são perseguidos ou escapam – disse com sua boca desdentada – é hora de fazer as malas.” O ancião iugoslavo tinha razão: na história moderna, os judeus foram os “canários” do mundo. Elementos minoritários e vulneráveis da sociedade, os judeus sempre foram o primeiro alvo dos movimentos de destruição e desumanização. Na Inglaterra do “apaziguamento”, Winston Churchill denunciava o verdadeiro caráter da Alemanha nazista. Um regime que começa perseguindo os judeus – dizia Churchill – cedo ou tarde ameaçaria a liberdade e a vida de todos. A temperança moral do mundo é posta à prova. Se os judeus podem ser perseguidos ou assassinados impunemente – raciocinam os tiranos – então se pode passar para o próximo passo. Todas as grandes ditaduras de nossa época – nazismo, stalinismo, esquerda, direita – tiveram os judeus como o alvo predileto e como coelhinhos da Índia de sua violência assassina. Todas terminaram por causar milhões de mortos de todas as nações.

Se o gás mata o canário, cedo ou tarde matará o mineiro. E isto é o que sucede hoje em dia com o fundamentalismo islâmico. O integrismo é o novo totalitarismo que ameaça as sociedades ocidentais. Sob um verniz de conceitos religiosos, o fundamentalismo é uma doutrina política totalitária e fascista. Israel e os judeus foram o seu primeiro alvo e, graças à indiferença do mundo, agora o flagelo estende-se por qualquer lugar como uma impiedosa epidemia. Quando israelenses morrem despedaçados pelas bombas terroristas, o mundo se cala. Vozes de condenação se levantam contra Israel e não contra os assassinos. Os algozes e não as vítimas recebem a solidariedade do mundo. O israelense entre as nações ocupa o mesmo lugar que o judeu entre os povos: o eterno culpado, o vilificado, o causador de problemas.

Israel é acusado de causar o terrorismo islâmico. Na realidade, o Estado judeu é sua primeira vítima e é um campo de provas para os assassinos.

A covardia e a indiferença do mundo ao lidar com o terrorismo convenceu os assassinos de que poderiam atacar os Estados Unidos, a Europa e a Ásia. Assim, o terrorismo converteu-se num mal em escala mundial.

Houve também outros “canários” na história moderna. Em 1938, o estado pacífico e democrático da Checoslováquia foi a primeira vítima de Hitler. Foi um balão de ensaio do nazismo. Se Praga caísse, cairiam também Varsóvia, Amsterdã, Paris e Londres. No infame tratado de Munique, as potências democráticas claudicaram ante Hitlerque, convencido de sua debilidade, sentiu-se confiante para lançar a Segunda Guerra Mundial.

A lógica de Munique continua viva, tanto na Europa quanto nos assassinos. Quando a voracidade de Hitler reclamava a Checoslováquia, França e Inglaterra assinalavam o pequeno país centro-europeu como o culpado de uma tensão que levaria à guerra. “Esse país insolente deve ceder – dizia Chamberlain, referindo-se à Checoslováquia – para salvar a paz.” Praga foi forçada a ceder, a Checoslováquia desapareceu e ainda assim começou a guerra. Hoje em dia a mesma lógica se aplica a Israel. Frente ao terrorismo, Israel deve ceder, para salvar a paz.

A falácia desse argumento é óbvia: o fundamentalismo islâmico não busca a reivindicação territorial, senão a destruição de Israel e do Ocidente em seu conjunto. Frente a esta realidade, o Ocidente, e especialmente a Europa, são suicidamente cegos. Se, como a Checoslováquia, Israel cair ante o fundamentalismo, qual será o próximo passo? A França, que tem em seu seio milhões de muçulmanos e onde os grupos fundamentalistas ganham cada vez mais poder? A Inglaterra, onde imãs fundamentalistas queimam bandeiras inglesas? O que o Ocidente parece não entender é que Israel é o campo de batalha onde está lançado seu próprio futuro. Se Israel cair frente ao terrorismo, então todo o Ocidente estará ameaçado. As mesmas redes de tráfico de armas e dinheiro que os terroristas usam para atacar Israel são utilizadas para atacar os Estados Unidos e outros países ocidentais. Im’ad Magnia, o assassino do Hezbollah que organizou o atentado à AMIA, foi ativo na rede que promoveu a tragédia do 11 de setembro. Ramzee Yussef, o líder do primeiro atentado às torres gêmeas em 1993, começou no Hamas. O Irã arma o Hezbollah e com as mesmas redes comandou o assassinato de dissidentes nas ruas de Berlim.

Em Istambul, a estratégia dos “judeus primeiro, depois o resto” é ensaiada com sangrenta eficácia: duas sinagogas foram atacadas e só uns poucos dias depois alvos ingleses e turcos também o foram. Berlim e Jerusalém: Durante a Guerra Fria, o mundo pareceu ter aprendido. O Ocidente se deu conta de que Berlim era o canário que não podiam deixar morrer. Enquanto a ditadura comunista construía o muro de Berlim, John F. Kennedy visitou a cidade sitiada e clamou: “Eu sou um berlinense.” Estava enviando uma mensagem clara e forte: se Berlim é atacada, todo o Ocidente o é. Se deixamos Berlim cair, isolada e fechada em um mar de forças hostis, então nós seremos os próximos.

Israel – curioso paradoxo – é como Berlim: um oásis democrático e ocidental rodeado de forças hostis e de um mundo árabe em crescente radicalização. Assim como Berlim podia ser deglutida pela “maré” soviética, Israel pode desaparecer sob 20 ditaduras árabes. Porém, a lucidez do mundo – em especial da Europa – durou pouco. A cegueira judeofóbica não deixa ver o óbvio e empurra a Europa para uma espiral suicida. Ao invés de olhar o problema de frente, os europeus consideram Israel como “um perigo para a paz”.

Igualmente foi ridículo considerar Berlim – e não os que a ameaçavam – como um perigo para a paz. A mesma cegueira que fez com que Chamberlain chamasse Benès (o líder checoslovaco) de insolente e não a Hitler. Aos franceses, que por moda ou ódio judeofóbico acusam Israel de ser “o país que mais ameaça a paz mundial”, lhes perguntaria: se o Hamas vence, como deterão os fundamentalistas da França? Na mente dos fundamentalistas, a queda de Israel aplainará o caminho para futuras conquistas, no coração mesmo da Europa.

Devido à cegueira e à covardia de Munique, a França passou a ser de primeira potência do mundo a um patético país de terceira, e a Europa perdeu para sempre seu espaço de proeminência. Agora, graças a seu antissemitismo e à sua hipocrisia, permitirá ao fundamentalismo islâmico reinar sobre o continente.

(texto original escrito em 2014)

Por Pilar Rahola