Novembro, 2023 - Edição 297

Os efeitos das mudanças na cena literária de hoje

A cena literária de hoje não é a mesma de ontem. A frase pode parecer de efeito ou banal. Mas condensa o que ando pensando a respeito do atual tsunami de “escritoras” e “escritores” que assolam o país. Penso que o fenômeno é interessante e merece, pelo menos, uns pitacos de quem perpassa pelo universo da escrita. Ainda que não seja minha intenção “doutrinar” sobre isso. E que fique bem claro que detesto doutrinas, sobre o que quer que seja.

Se vocês tiverem interesse e prestarem atenção, verão que já existe um montão de gente, com expertise bastante, que vem tratando esse assunto em artigos, aulas, palestras e quejandos de modo bem mais autorizado de que sonham as minhas singelas elucubrações. Posso até dizer que as opiniões dos entendidos se desdobram em duas correntes. Por um lado, tem aquele pessoal mais exigente que condena a falta de conhecimento e de técnica, além da pouca familiaridade no trato com o desenrolar da produção histórica em literatura que os autores novatos (e outros nemtanto) costumam exibir. Por outro lado, não deixa de existir quem considere que esse fenômeno é parte naturalizada da “espetacularização do eu” e da “midiatização narcísica”, muito citadas por estudiosos, cientistas e críticos.

No primeiro caso, é fácil notar que, de fato, muitos desses seres que se autointitulam “escritores” exibem uma avidez gulosa pelo que acreditam ser um título capaz de lhes conceder fama e sucesso social. Alguns nem se dão ao trabalho de ler outros autores – nem do passado, nem do presente. Acham que estão reinventando a roda. Quase sempre, o que sobra é a mediocridade dos produtos que resultam desse afã de publicar romances, contos e poemas como se fossem biscoitos levados ao forno, em fieira.

No segundo caso, é bem provável que a facilidade no manejo das redes sociais e dos novos suportes tecnológicos promovam a inserção dos sujeitos em lugares e posições que até então lhes seriam negados por insuficiência de desejo ou de competência.

Isso leva a pensar que o excesso de autores e de publicações pode ser um reflexo das mudanças ocorridas no território da literatura. No cenário literário do século XXI, a literatura enfrenta o apocalipse da estabilidade. O que se vê é a precariedade e a incerteza do cânone que fazia valer as narrativas, em prosa e em verso, no universo da ficção e do imaginário. Assim, talvez a banal multidão de escritos e autores de hoje seja apenas um sintoma da instabilidade e multiplicidade possível das representações literárias atuais, ainda em busca de um outro cânone. Que, quem sabe, algum dia, virá. Ou não virá, nunca mais.

Por Bernadette Lyra, Doutora em Artes/Cinema pela ECA/USP e pós-doutora pela Universidade René Descartes, Sorbonne.