Outubro, 2023 - Edição 296

O ônibus laranja

Se a gente soubesse antes…
Se a gente soubesse antes… Teria medo de viver? Os fatos adversos empanariam a sutileza do belo, a ingenuidade, as surpresas, o alento, os adágios, o crescendo do que viria a ser? Quando a gente percebe que tem um filho especial, sente uma dor muito grande – pelo profundo receio do que a vida vai lhe roubar, das dificuldades que o esperam, das superações constantes que lhe serão exigidas, dos sofrimentos que terá quando entender que é diferente, dos preconceitos e rejeições que enfrentará… Oh, céus, como poupá-lo? Como compensá-lo? Só havia um meio, logo descobri – dar-lhe a certeza de ser incondicionalmente amado! E assim ele cresceu:



Quero contar esta história e mal me atrevo. É-me difícil abranger ou relatar o abissal significado que a mansa superfície engana. Também não sei se conseguirei discernir a verdade intrínseca e chegar ao âmago da extrema simplicidade onde tudo se resume.

Meu menino cresceu. Fisicamente era um homem, com as instâncias do instinto intactas e gritando. Seu sonho: ter uma namorada. Eu já vinha pensando no assunto desde que percebera uma espécie de dor muito íntima a resvalar em seu olhar.

Mesmo sempre cercado de amigos, era um ser solitário. Não fazia parte. Não pertencia ao nosso mundo. Transitava entre o adulto e a eterna criança, entre surpreendentes laivos de sabedoria que emergiam do mais recôndito de seu ser. Mas, acima de tudo, era um ingênuo – puro, cristalino (sim; meu menino de alabastro).

Criativo, tinha suas manias bem, bem peculiares: um senso de organização fanático – seu guarda-roupa era programado de segunda a domingo, semana após semana. E a mania de me escrever bilhetes, com quadradinhos para as respostas em sugestões de múltipla escolha, a meu critério – como esta por ocasião de seu aniversário:
“Mãe – Para meu aniversário. Marque um X na resposta certa:
( ) Festa junina no quintal
( ) Rádio novo
( ) Churrasco no terraço
( ) Pizzaria com amigos
Que mundo abraçaria essa criatura adorável e misteriosa?

Até que, num certo fim de semana, só apareceu em casa às cinco da manhã. – Onde andou, filho? – perguntei, preocupada.
– Aconteceu um milagre, mãe: fiquei a noite toda com uma menina.
Era uma forasteira. Surgiu do nada; sem nome, sem endereço.

Fez amizade com o grupo de rapazes na pracinha e, para surpresa de todos, principalmente dele mesmo, ela o escolheu para ficar. “Ficar” era a grande jogada. Todo mundo “ficava”, menos ele. O inacreditável acontecera! Ele, que já estava conformado com sua solidão, de repente lhe cai uma nos braços – por livre e espontânea apetência.

Desfilaram de mãos dadas, mão no ombro, pra lá pra cá, como toda gente normal. Com um sorriso iluminado, exibia sua conquista, a autoestima reconquistada. Finda a noite, começo do dia, a menina se foi – sem nome, sem endereço. Esfumou-se na madrugada com a névoa da manhã. O sonho ficou, marcado a ferro e fogo no peito arfante, no peito infante. Era possível!

Todo fim de semana a chegada do ônibus era alvo de todo seu interesse. A cor laranja do ônibus acendia-se em luzes. No ronco do motor, promessas. Um vulto de mulher – quem sabe, ela? – detonava em seu peito uma rajada de palpitações.

Dois meses. Dois meses durou o sonho. O sobe-desce das tocaias e desencantos, ansiedades e frustrações – e a esperança ainda. Mesmo que a flor da noite fenecesse à aurora, renascia viçosa em cada entardecer. E em cada entardecer – qual galetto al primo canto – se emplumava e ensaiava seu canto.

Dois meses são, no mínimo, mil quatrocentas e quarenta horas; sete milhões, setecentos e setenta e seis mil pulsações que se multiplicavam em seu expectante coração – um coração tão incandescente que, quando ele bebia água, chiava.
Dois meses se passaram.
Até que...
O ônibus laranja, luminescente, avultou na rua. Gritou buzina, roncou estardalhaço – alvíssaras! Dentro, um vulto metamorfoseou-se em luz – certeza: era ela! Ela, ela, ela pulsando-lhe nas têmporas, nas veias dilatadas pela corrida, no coração a galope, subjugando-o. Ela!

Nem gesto, nem palavra. Só um olhar – frio, fino, fundo, fulminou em segundos a candura do menino/homem … perplexo! Estilhaçou-se o delicadíssimo cristal.

A caixinha de veneno para formigas foi encontrada na praia. Vazia.

Chamada às pressas ao hospital, vejo-o, através da vidraça da UTI. Muito pálido! Não posso sequer tocá-lo. Colo as mãos espalmadas no vidro gelado que nos separa – quisera trespassá-lo. Há um cheiro de éter no ar. Tudo parece irreal e enevoado.>
Procuro em minha bolsa, com dedos nervosos, lápis e papel... e, com meu amor pulsando-me nas têmporas, nas veias dilatadas, no coração aflito, escrevo, num bilhete de múltipla escolha:>
“Volta Schumi (... o apelido do coração). Eu tenho propostas para você. Por favor, marque um X na resposta certa:>
1. ( ) Viver>
2. ( ) Viver>
3. ( ) Viver>
4. ( ) VIVER!”

Por Marilena Soneghet, da Academia Espírito-santense de Letras.