Agosto, 2023 - Edição 294

A literatura infantil de Ester Abreu

A busca de harmonia entre pessoas, animais e a natureza
Ester Abreu Vieira de Oliveira nasceu em Muqui, em 31 de janeiro de 1933, há noventa anos. Graduada em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Espírito Santo (1960), especialista em Filologia Espanhola (Madri), especialista em Português Superior – Universidade de Lisboa (1968), mestra em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1983), doutora em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994), fez Pós-doutorado em Filologia Espanhola – UNED – (Madri – 2003). É membro do Colegiado do Programa de Pós-graduação – Mestrado e Doutorado em Letras – Estudos Literários – UFES, desde a sua criação, em 1994, e sempre atuou na área de Letras, produzindo e ensinando teatro, poesia e narrativa da literatura hispânica, tanto a brasileira quanto a espanhola. É pesquisadora da Linha de Pesquisa Poéticas da Antiguidade à PósModernidade (PAP), líder do grupo de Pesquisa CNPq: Estudos de literatura hispânica: caminhos e tendências. Tem participado como representante de instituição em comissões e conselhos culturais estaduais e municipais.

Possui centenas de trabalhos publicados (impressos, on-line e CDs) em revistas especializadas, em jornais e em anais de congressos com temas referentes às línguas e às literaturas espanhola e brasileira e, ainda, livros didáticos e infantis, tradução de obra, livros de poesia, de crônicas e de ensaios. Pertence à Academia Espírito-santense de Letras, Cadeira 27, sendo sua presidente deste 2019, à Academia Feminina Espírito-santense de Letras, Cadeira 31, ao Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, à Associação de Professores de Espanhol do Espírito Santo (Membro fundador), à Associação Brasileira de Hispanista (membro fundador), à Asociación Internacional de Hispanista, à Asociación Internacional del Teatro Español y Novo Hispano – Aitenso.

Páginas e páginas seriam necessárias para descrever as atividades curriculares da professora Ester Abreu, mas vou destacar aqui uma parte de sua extensa obra produzida nestes noventa anos de profícua existência: a literatura escrita para crianças. Ester sempre se destacou, modestamente, no mundo predominantemente masculino das letras e da docência no ensino superior, por sua garra, determinação, inteligência e sensibilidade, e, sobretudo, por sua postura e palavra de mulher, a marca da diferença neste mundo conturbado por guerras e tragédias sociais, violências geradas, quase sempre, pelo poder masculino. A guerra da Ucrânia é um triste exemplo disso. Afinal, já escreveu Svetlana Aleksiévitch, a primeira jornalista a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura, “A guerra não tem nome de mulher”. Filha de pai bielorusso e mãe ucraniana, Svetlana nasceu em Stanislav, Ucrânia, em 1948, e em seus livros descreve os horrores do desastre de Chernobil, em 1986, e das guerras em sua região, hoje devastada pela fúria ensandecida de Putin e seus comandados.

A extensa obra literária, científica e didática de Ester Abreu se iniciou com Português para estrangeiros, 1981; Antologia Poética de Cidades Brasileiras, 1985; Poetas brasileiros de Hoje, 1986, e em dois livros publicados com muitas dificuldades, Momentos e Ibéria Dividida, ambos em 1988. Em 1994, alguns de seus poemas foram traduzidos para o francês e publicados na antologia Quelqueschose d´elle, de edição suíça. Momentos, seu primeiro livro de poemas, ganhou menção honrosa na AEL, em 1986, prêmio publicação do DEC, em 1982, e elogios dos acadêmicos Elmo Elton e Luiz Busatto. Segundo o orelhista da obra, “Os cinco momentos e ecos de Momento representam o homem com seus cinco sentidos despertos, seus sonhos, gostos, memórias, recordações e inquietações atávicas”. Em estudo crítico publicado em 1990, destaquei a valorização da memória, da tradição, do lirismo sentimentalista, sem piegas, dos poemas de Ester Abreu, numa época de desconstruções, ceticismo, descrenças, desilusões. Ester é a poeta da esperança, da ilusão, da valorização da vida, da simplicidade, do sentimento, que não passa, apenas, pela vida, mas que a vive. Em Ibéria dividida, coloca, em poemas, a duplicidade que sempre marcou suas pesquisas daqui e dalém mar: Brasil/Europa, Portugal/Espanha; colonizado, colonizador. Certa vez, me confessou ter a alma dividida. Todos nós, cara Ester, a temos. É fruto de nossa consciência de abismo que herdamos com a modernidade.

Depois dessas, muitas outras obras foram publicadas, em diferentes gêneros literários: ensaios, crônicas, poesias e literatura infantil. Essa se iniciou com a publicação de O Lagarto Medroso do Jardim, publicado em espanhol/português pela Editora Ao Livro Técnico em 1999, republicado pela Editora Imperial Novo Milênio em 2008 e pela Opção Editora que, em 2018, publicou uma nova versão bilíngue intitulada O Lagarto Amedrontado do Jardim; em 2018, saiu o livro O Coelhinho e a Onça / El conejito y el jaguar, pela editora Cajuína, SP. Em 2019, Uma Família Feliz foi publicado em português/espanhol e português/pomerano pela Editora Formar. E, em 2022, coube à Editora Jordem publicar Surpresas em um Domingo, também em e-book.

Em O Lagarto Medroso do Jardim, narra-se a história de um lagarto que, ameaçado por uma criança, fica escondido em sua toca, com medo de sair e aproveitar o dia. Mas um animalzinho do jardim vê toda a cena e ajuda o bichinho que está sendo apedrejado. Apoiado pelo novo amigo, o lagarto volta a ser livre e o menino, refletindo sobre seus atos, muda seu comportamento. Em O Coelhinho e a Onça, tudo estava em harmonia na casa da vovó, e um coelhinho saiu da toca para aproveitar o sol e se alimentar. Enquanto interage com os outros animais do sítio, surge do rio uma onça, que tenta pegá-lo. Os macacos o alertam do perigo e aparece o tio Artur, que afugenta a onça. O coelho volta para sua vida calma e à noite vai dormir em sua toca, pois não há mais perigo.

Em Surpresas em um Domingo, as irmãs Olívia, Júlia e Alice gostavam de passear no parque com a vovó, mas, naquele domingo, ela não pôde ir e o tio Pedro as levou. Lá, brincavam com o que havia, mas Alice, muito travessa, foi pedalando até uma casinha no meio do lago para ver os ovos da pata que fizera um ninho ali. Ao chegar, se assustou, pois viu dois olhos redondos e um vulto perto do ninho. O tio e o vigia do parque ouviram seu grito e pedalaram até lá. Era um gambá que queria comer os ovos e fugiu ao ver os adultos. Passado o susto e para acalmar Alice, o tio levou as meninas para ver os outros animais do parque e seus filhotes. Passearam nos pôneis e foram lanchar, sob uma árvore. Enquanto o tio tirava um cochilo, as meninas foram explorar uma cabana ali peto. Lá, encontraram uma linda princesa, uma sereia e uma bruxa. Assustaram-se, mas elas disseram que eram artistas se preparando para uma apresentação da peça teatral “A sereia que salva a princesa”, convidando-as para assistir ao teatro. As meninas saíram correndo para acordar o tio dorminhoco, ansiosas para assistir à apresentação.

O que se pode observar nos quatro livros para crianças de Ester Abreu é que o mundo é apresentado para as crianças como uma utopia possível de ser realizada. Os conflitos existem, crianças mal-educadas podem machucar lagartos, coelhos indefesos podem ser pegos por onças famintas e gambás são animais assustadores para crianças, se alimentam de ovos de aves, mas nem por isso devem ser mortos. A realidade é mostrada às crianças suavizada pelo filtro ideológico do mundo que se quer passar às crianças, em que a violência cede lugar à harmonia e à fantasia. Afinal, já nos disse Cecília Meireles, em conferência de 1949 publicada em Problemas da Literatura Infantil (Summus Ed, 1979): “O livro infantil, se bem que dirigido à criança, é de invenção e intenção do adulto. Transmite os pontos de vista que este considera mais úteis à formação de seus leitores. E transmite-os na linguagem e no estilo que o adulto igualmente crê adequados à compreensão e ao gosto do seu público.”

A literatura escrita para crianças, desde a sua origem, na Antiguidade Clássica greco-latina (se considerarmos as fábulas) ou, na Idade Média (se levarmos em conta os contos maravilhosos ou contos de fadas), foi sempre marcada pelo desafio de se encontrar “palavras e sentimentos” adequados que pudessem estabelecer um diálogo salutar escritor/leitor, como nos disse Clarice Lispector, outra escritora famosa, que também escreveu para as crianças.

A literatura infantil é marcada, a priori, por um adulto escritor/editor/ crítico/pai que a direciona a uma criança (leitora/receptora) do texto a ela dirigida. Em poucos momentos da história, pôde a criança escolher o que fosse melhor para ela por si mesma e, mesmo se o fizesse, o gosto da criança por determinada obra de leitura é, quase sempre, comprometido com uma visão do adulto que a direciona para tal obra ou escritor. Ana Maria Clark Peres afirma sobre isso: “…creio ser impossível negar que a relação criança/ literatura vem se efetivando, na maioria das vezes, em bases rigorosamente postuladas por adultos que se julgam detentores de um saber sobre a criança.” Daí provém o eterno vínculo da Literatura escrita para crianças com o pedagógico, o moralesco e o adultismo. As histórias são escritas, em sua maioria, para transmitir valores, conceitos, lições, visões de mundo que são predominantes em determinadas épocas.

Creio que se pode ler os quatro livros infantis de Ester como releituras de fábulas tradicionais imortalizadas por Fedro ou Esopo ou, ainda, como reescritas de clássicos como Alice no País das Maravilhas, pois a curiosidade de Alice é que a leva a desvendar o mundo e seus mistérios. Creio, ainda, que a literatura infantil de nossa querida Ester retome o conceito milenar de um “ensinamento útil sob o adorno ameno”. Seus livros, escritos em português, espanhol e pomerano, certamente encontrarão leitores contemporâneos que, vivendo num mundo extremamente violento, tecnicista, desumano, como o atual, encontrarão neles o sonho possível da convivência harmoniosa entre pessoas, animais e a natureza. E dela e de sua obra, eu concluo com as mesmas palavras de Cecília Meireles ao comentar a obra de Selma Lagerlöf, a primeira escritora a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura: “Não é uma principiante, nem uma escritora qualquer que se arrisca a essa alta aventura: é alguém que conhece cada palmo de sua terra e da alma de sua gente. [...] E alguém que sabe usar as palavras com maestria, pela vasta experiência de uma longa carreira literária.”

Por Francisco Aurélio Ribeiro é ex-presidente da Academia Espírito-santense de Letras.