Agosto, 2023 - Edição 294

O pai eterno de João Silvério Trevisan

“Quantos caminhos um homem deve andar/ Pra que seja aceito como homem/ Quantos mares uma gaivota irá cruzar/ Pra poder descansar na areia...”, diz a canção de Bob Dylan. Assim foi, e de certa forma tem sido, a trajetória do escritor brasileiro João Silvério Trevisan (1943-...). Nesses quase oitenta anos de vida, andou por caminhos tortuosos, desde a infância em Ribeirão Bonito, no interior de São Paulo, onde foi até apedrejado pelos colegas, e vagou, melhor, caiu e rolou na estrada como a pedra da canção “Like a Rolling Stone” (também de Bob Dylan), autoexilado em vários países, sem lar, como um total desconhecido para, depois de muitas odisseias, se estabelecer como um dos grandes romancistas do nosso país, apesar do pouco reconhecimento ao seu talento.

João Silvério nos conta com muita emoção sua história dolorosa no autobiográfico Pai, Pai (RJ: Alfaguara, 2017). É um livro para os fortes, pois dói na alma acompanhar a infância sofrida do menino que trabalhou feito gente grande e muito apanhou sem saber por que, o que o fez sentir-se culpado, transferindo a vergonha que seria do pai para si próprio, numa inversão de posições. Foi espancado pelo “pai patrão”, homem bruto de quem guardou um pote de mágoa, e muito trauma, como se vê no livro, cuja frase inicial já impacta o leitor: “Tudo que meu pai me deu foi um espermatozoide.” (p.

7). No entanto, busca compreender esse pai tão difícil: “Sim, há um grande risco de que eu esteja sendo injusto. Meu pai me abriu caminho para ser quem eu sou, e aqui estou escrevendo por sua causa. Sei da temeridade de conspurcar a imagem de um morto, e com isso me petrificar numa estátua de mágoa, como muitas vezes fui tentado, ao olhar o passado em busca de conforto.” (p. 6 e 7). Assim se inicia esse livro arrebatador do filho autor que, perto dos setenta anos, começa a escrever sobre o pai José, que o marcou “com o ferro em brasa do seu sobrenome” Trevisan. (p. 8). Escreve para, numa espécie de catarse, exorcizar o passado, tentar entender quem foi esse homem cuja ausência tem marcado a sua existência como um fantasma que quer ser compreendido. E o filho mal-amado avisa: “esta será uma conversa de homem pra homem, entre mim e meu pai. Ele terá que ouvir. Tudo. Em todos os lugares onde estiver.” (p. 9).

José Trevisan e seus irmãos eram filhos de italianos. Pobres, trabalharam juntos no comércio de panificação, e exibiam na fachada da casa o nome “Padaria e Bar Brasil”, de que se orgulhavam. Foi nessa padaria que o pequeno João Silvério comeu o pão “mirrado e borrachento” que o pai amassou. Franzino, fazia entrega dos pães com um grande cesto, pão, cada vez mais, da pior qualidade, que o fazia ouvir reclamações e xingamentos. Lembra-se da “cesta de bambu, grande para o meu tamanho” (p. 25); foi também nesse bar que o pai se tornou alcoólatra. Esse o vício que o levou à decadência física, moral e material. Apesar de trabalhador, o negócio não resistiu por muito tempo, e o pai “pinguço” levou a família à miséria. Tornou-se violento: espancava a mulher e o primogênito João que, menino sensível, povoava a sua solidão com as canções do rádio, que o faziam chorar de tristeza e emoção. Cedo descobriu a arte. Nas matinês, apaixonou-se por Tarzan, pelo Zorro e pelo cinema (tornou-se mais tarde grande roteirista). E esse caminho foi ainda o motivo do desgosto do pai “machão” que via muito mal a inclinação homossexual do filho, para ele, ovelha negra.

As lembranças da infância infeliz e desamparada são muitas: as surras que a mãe levava de madrugada e que o enchiam, e aos irmãos, de terror; os chutes e “tapaços” imprevistos do pai, mostrando todo o seu ódio e brutalidade (“sem nunca compreender por que me espancava”); os fregueses xingando o pai de “bêbado, pinguço, cachaceiro ou pau-d’água” (p. 35); a bicicleta prometida todo ano no Natal, que nunca chegou. E numa passagem revoltante, conta-nos do “batismo”, quando, sem saber nadar, foi jogado no rio por um bando de colegas perversos que, ao vê-lo quase se afogando, riam e gritavam que era para ele “aprender a ser homem”. (p. 54). Respondeu àqueles sádicos: “Sou homem, sim, mas não quero ser igual a vocês.” (p. 55). Aquele foi o seu batismo; o rio, o seu Jordão, disse. Doloroso rito de passagem, mas uma bênção, como considerou: “Inadvertidamente, eu iniciava o meu processo de ser outro, um homem, sem deixar de ser o mesmo filho de José, o cachaceiro.” (p. 55).

João Silvério, como o bíblico Esaú, outro mal-amado, teve recusada a bênção do pai e, como Cam, o filho amaldiçoado de Noé, que o viu bêbado e nu, teve, porém, a bênção da mãe, Maria, que o salvou com seu amor, bondade, compreensão e, com muito sacrifício, deu- -lhe os primeiros livros para ler, o que lhe abriu espaço para a arte e o ajudou a escapar do pai tirano na ida para o seminário. O primeiro de muitos exílios. (É muito interessante a semelhança entre a infância pobre com pai alcóolatra, os estudos no seminário, a perda da fé católica e depois o autoexílio de James Joyce e João Silvério Trevisan.

O seminário, onde estudou como bolsista, foi parte fundamental em sua alta cultura, sobretudo na formação em Filosofia. Apesar de mais tarde ter rompido com a religião, lá engajou-se nas mudanças progressistas da Igreja Católica; apaixonou-se secretamente por colegas e pela música erudita; foi despertado para a literatura: escreveu seus primeiros contos e descobriu a vocação de escritor, roteirista e cineasta, seguindo carreira premiada por sua extensa obra como romancista, a exemplo do espetacular Ana em Veneza (1994), que, sozinho, poderia ter lhe dado o Nobel, como afirmou a gerente de literatura da Eichborn, no lançamento em Berlim, em 1997, onde o livro foi o carro-chefe da editora alemã na feira. Mas a busca do pai continua. Diz ele: “Para além da fase do seminário, o processo alquímico de esculpir dentro de mim a figura perdida de pai se desdobrou para vários outros homens (educadores ou não) que exerceram a função paterna no processo de minha formação.” (p. 138).

Foi com Paulo Emílio Salles Gomes (e depois com o lendário Francisco Julião, que lhe abriu a casa no México), cuja generosidade marcou a vida do ex-seminarista, que entrou em contato com as primeiras ideias libertárias. Como pai espiritual, exercendo a função paterna, a presença do cineasta ao lado da mulher, a bela Lygia Fagundes Telles, ajudou-o a ressignificar a falta de José, iniciando um longo processo de amadurecimento e busca de perdão ao pai. Teve também vida devassa (menino malcriado?) numa tentativa inconsciente talvez de desafiar os valores do pai, para dele se libertar e tornar-se quem sempre fora. Essa é a via-crúcis do livro: um homem às voltas com a dor da perda, com sua rebeldia e inquietação sexual e existencial, com seus amores expressos e “fora-da-lei”, quase naufragando na nau dos insensatos, matando um leão por dia para sobreviver. Jamais perdeu a dignidade de ser humano e cidadão honrado sempre a favor dos excluídos e militante da causa LGBT.

Nesse Pai, Pai, título plurissignificativo pela repetição da palavra, temos o duelo do filho com a imagem do pai, tão infeliz quanto digno de pena, a quem demorou trinta anos para compreender; do filho, já homem maduro, que busca apoio na arte e na psicanálise (como um Édipo às avessas tentando decifrar a si mesmo) e em todos os exílios onde se perdeu e se achou para aceitar a rejeição paterna – sua verdadeira orfandade – buscando o amor de outros homens, pois tudo o que sempre quis foi tão somente o abraço do pai. E a marca do “nome-do-pai”, como disse Lacan.

Por Vera Lúcia de Oliveira