Agosto, 2023 - Edição 294

Mattoso e Herculano

Há dias falecia, aos 90 anos, o historiador José Mattoso, expoente dos estudos históricos em Portugal. Especialista na época medieval lusitana (em especial na história das ordens religiosas e da aristocracia dos séculos X a XIII), Mattoso tinha formação beneditina, tendo vivido vida monástica antes de pedir e obter dispensa dos votos para se dedicar ao estudo da História. Não há dúvida da importância da sua obra também para a historiografia brasileira, sendo ele, como foi, um dos grandes intérpretes das intrincadas redes de relações humanas e institucionais que condicionariam nossa conformação como nação. Dentre outros trabalhos de importância tanto para a historiografia como para o público em geral, organizou as coleções da História de Portugal e da História da Vida Privada em Portugal. Seu A escrita da História reúne reflexões sobre o ofício, sendo leitura indicada para profissionais e para quem simplesmente se interesse por esse ramo do saber. Enfim, o mundo acadêmico, que o reconhecera em vida, pranteou-o quando da sua morte, pois como bem sintetizou minha orientadora, a prof. dra. Adriana Pereira Campos, da Universidade Federal do Espírito Santo, José Mattoso foi “um clássico em vida”.

Dentre os afazeres que o ocuparam ao longo da carreira, consta a direção da Torre do Tombo, encargo que desempenhou entre 1996 e 1998. Íntimo das fontes, a última publicação em que trabalhou (ao menos que eu saiba) foi a atualização do volume Narrativas dos Livros de Linhagens, em edição que agora (2020) saiu pela Temas e Debates (uma chancela da Bertrand). Trata-se da recolha de narrativas referentes a tradições familiares, contadas na forma de lendas e mitos, constantes dos três repositórios fundamentais para estudos da genealogia nobiliárquica: O Livro de Linhagens do Deão, o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro e o Livro Velho de Linhagens. Dessa publicação, que por coincidência tinha recém-adquirido quando do falecimento de Mattoso, consta a tradição medieval da Dama do Pé de Cabra, senhora misteriosa que, naqueles tempos remotos, despertou a paixão de um senhor de terras biscainho, com quem teve dois filhos e cuja vida conjugal dependia de jamais benzer-se o varão na sua presença.

Acontece que essa tradição, constante do repositório do Conde D. Pedro, foi desenvolvida na forma de conto histórico por Alexandre Herculano de Carvalho Araújo, publicista e historiador português, introdutor do gênero novela histórica em Portugal. Herculano iniciou em 1853 um notável trabalho de identificação de documentos históricos espalhados pelos arquivos eclesiásticos país afora, fazendo-os recolher à Torre do Tombo e organizando sua publicação em séries temáticas reunidas sob o título Portugaliae Monumenta Historica (PMH). A mesma coleção a que em 1980 José Mattoso daria continuidade, acrescendo-lhe a edição crítica dos mesmos nobiliários medievais de onde tirou os textos do Narrativas dos Livros de Linhagens. Interessante exercício é a comparação da versão original da tradição constante do livro de Mattoso com o conto de autoria de Alexandre Herculano. Como se sabe, certos fatos históricos (ou ao menos revestidos de uma qualquer historicidade) por sua singularidade acabam se tornando fonte preciosa também para a Literatura. Seguramente, é o caso dessa singular passagem.

Por Getúlio Marcos Pereira Neves, membro do PEN Clube do Brasil.