Agosto, 2023 - Edição 294

Cícero e a palavra

As palavras estão carregadas de dinamite. Ninguém provou tanto esse poder quanto Cícero, o filósofo, orador, político e advogado da antiguidade romana. Em minhas duas formações acadêmicas, Direito e Letras, deparei-me com ele, com sua figura de toga branca e cabeça coroada de louros, com seus ensinamentos. Posso imaginá-lo na tribuna com sua mente versátil, seu poder de convencimento, sua retórica de mestre.

O tratado que Cícero escreveu sobre a amizade é uma das mais belas páginas que li. Lições que me têm acompanhado como estímulo e conforto em várias situações. Não é lindo ponderar que as coisas humanas são frágeis e perecíveis, que devemos procurar amigos a quem amemos e pelos quais sejamos amados? Que sem amizade e sem bondade a vida não tem prazer algum? Que devemos suportar todos os sofrimentos porque eles são breves, mesmo quando são difíceis? Que sem virtude a amizade não pode existir? Que consolo é cultivar amizades. Fiz sempre de meus alunos grandes amigos. Busquei também a amizade dos meus pares, os escritores, vivos ou mortos, como fonte de eterna afeição. Desejei ardentemente atingir a meta em companhia daqueles que seguiram a carreira das armas, que são as letras.

Impressiona a forma como Cícero lutou pelo ideal das leis e do estado de Direito. Durante a segunda metade caótica do século I a. C, marcada pelas guerras, pela ditadura de Júlio César, pelo tumulto político, pela confusão civil, pela infraestrutura minada de corrupção que sabotava a liberdade, Cícero tentou salvar com todas as forças esse valor fundamental da República. Perseguiu de forma implacável os traidores, os inimigos da democracia, procurando derrubar as conspirações com seus discursos inflamados. Um desses inimigos foi Catilina. As célebres “catilinárias” são até hoje exemplos estupendos de como se faz um libelo, ou seja, uma peça de acusação capaz de deixar o opositor encurralado.

Cícero enumera os excessos de Catilina e seus seguidores, denuncia seus simpatizantes como patifes e ladrões. E quando pairava alguma dúvida, na sua autoridade como cônsul do Senado, utilizava de um recurso infalível: perguntas. Uma torrente de perguntas já contendo em seu bojo as evidências e as respostas. Vejo-o bradar: “Até quando, Catilina, abusará de nossa paciência? Quanto zombará de nós ainda esse teu atrevimento? Onde vai dar tua desenfreada insolência? Não vês a todos inteirados da tua já reprimida conjuração? Julgas que algum de nós ignora o que obraste na noite passada, onde estiveste, a quem convocaste, que resolução tomaste?” Cícero parece capaz de penetrar nos acontecimentos, com aguda lucidez.

Catilina foge, conspiradores são estrangulados, mas Cícero ainda enfrenta o cônsul Marco Antônio, a quem julgava fraco e desprezível. Depois teve que encarar o terceiro cônsul, Otávio, que já se preparava para se tornar o imperador Augusto e dar fim total à República. Cícero, que tinha o apoio e a admiração da multidão, foi exilado, apanhado numa liteira quando tentava embarcar num navio para a Macedônia. Cortaram-lhe a cabeça e as mãos, que foram pregadas no Fórum Romano. A esposa de Marco Antônio arrancou-lhe a língua e a trespassou com seu gancho de cabelo numa vingança contra o seu dom de falar. Mais tarde, o filho de Cícero anunciou a derrota naval de Marco Antônio ao sair do Egito e o imperador Augusto reconheceu que Cícero tinha sido um cidadão sábio que amara sua pátria. Conheço tão bem essa história. Dei aulas de Literatura Latina por vários anos. Coloquei em meus filhos os nomes de Augusto e Otávio. A menina não se chama Cleópatra, é Letícia, minha alegria.

São inúmeras as passagens bíblicas que falam sobre a língua e o poder das palavras para bênção e maldição. Que os homens serão absolvidos ou condenados pelas palavras que tiverem dito. Que se alguém não tropeça no falar é perfeito, capaz de dominar todo seu corpo. Que a língua é um pequeno órgão, mas pode atear fogo num bosque com uma simples fagulha. Que pode contaminar a pessoa por inteiro e incendiar o curso de sua vida.

Que tempo o nosso. Por toda parte línguas que açoitam, afrontam, tramam destruição, navalhas afiadas, cheias de engano e mentira, espadas, flechas envenenadas, armadilhas mortais, peçonha de víboras, lábios de falsidade. Palavras carregadas de dinamite. Perturbação nos ares. Mesmo amordaçada, a chama que alimentou Cícero vibra em meu coração de humanista.

Por Raquel Naveira, da Academia Sul-Matogrossense de Letras.