Agosto, 2023 - Edição 294

A grande reportagem à volta do mundo

A aventura, nos mares ainda desconhecidos e nas terras ainda ignoradas, de Fernão Mendes Pinto, relatada na Peregrinação, possui a fluência, a agilidade e o imprevisto de uma grande reportagem.

Foi tudo o que quis ser ou aquilo que as circunstâncias o obrigaram a ser: mercador nos confins do Oriente, “a subir e descer as vias de água” no Mar Amarelo; soldado, cortesão, mendigo e pirata. Ele próprio resumiu as adversidades que sofreu: “treze vezes cativo e dezassete vezes vendido”. Como se tudo isto não bastasse também foi jesuíta, mas despiu a roupeta quando entendeu e voltou a ser um homem livre.

Era natural de Montemor o Velho. Pertencia a uma família humilde. Até aos 10 ou 12 anos – confessa na Peregrinação – encontrava-se “na miséria e estreiteza na casa do pai”. O apelo da distância incutiu-lhe o espírito da aventura. Correndo riscos e sobressaltos, quis libertar-se de um ambiente sem futuro. Tinha um primo na Índia. Embarcou numa caravela com destino a Setúbal. A certa altura o barco foi aprisionado por corsários franceses.

Os passageiros, açoitados, roubados e todos nus, conseguiram chegar à praia alentejana de Melides. Esta a primeira grande provação que o atingiu, até que seguiu para a Índia. Tinha 18 anos incompletos e, de março de 1537, até 1557, confrontou-se com as maiores incertezas e os mais diversos imprevistos, quantas vezes em luta fontal com a morte.

Várias gerações de investigadores, em arquivos e bibliotecas portuguesas e estrangeiros, ocuparam-se da autenticidade do texto da Peregrinação, para esclarecer localizações geográficas, fatos históricos, as relações com a Companhia de Jesus, os contatos com São Francisco Xavier. Um fato, porém, é notório: há saltos evidentes no texto, no decurso da sequência da narrativa.

Até ao fim da vida, – e mesmo depois da morte –, Fernão Mendes Pinto ficou sob a vigilância dos jesuítas. Ao saberem que redigia a Peregrinação, a pretexto de uma consulta, os jesuítas são acusados de retirar do manuscrito do livro inúmeras referências de tudo que diz respeito à Companhia de Jesus. Assim se pronunciaram, em obras, devidamente, fundamentados, vários historiadores e ensaístas, entre os quais António José Saraiva, que publicou estudos de consulta obrigatória.

Regresso a Portugal

Ao voltar a Portugal, Fernão Mendes Pinto passou pelos Açores, tal como se verificou com Vasco da Gama e Luís de Camões. Esteve, possivelmente, na ilha Terceira. Gaspar Frutuoso, nas Saudades da Terra (livro VI), foi categórico ao afirmar que a Baía de Angra era, em pleno Atlântico, a “universal escala do mar poente e por todo o mundo celebrada”. Chegou a Lisboa a 22 de setembro de 1558. Durante quatro anos e meio, procurou retomar a vida. Malograram-se as possibilidades.

Casado e com filhos, instalou-se na margem sul do Tejo. Adquiriu uma casa no Pragal, onde escreveu muito do que viu, e do que ouviu e lhe aconteceu do Extremo Oriente: na Abissínia, na Arábia, em Malaca, em Java, no Pegu, em Sião, na China e no Japão, até regressar a Portugal. Contemporâneo de Camões, nasceu antes dele, (c. 1509/ 1514-1583) e faleceu depois de Camões (1524/1525- 1579/1580). Fernão Mendes Pinto ultrapassou o itinerário de Camões no Oriente e as fatalidades que o atingiram em Goa e em Moçambique. A Peregrinação faz parte das obras indicadas como paradigmas da literatura portuguesa de viagens na expansão marítima que se verificou nos séculos XVI e XVII, desde Os Lusíadas até a História Trágico Marítima.

“Fascinação Irresistível”

Entre as obras e escritores portugueses que Teixeira Gomes mais considerava, incluía Camões: “o melhor exemplo de uma repentina e salutar renascença, de pureza de formas e claridade de ideias e de estilo”. Embora o grande público continue a ignorar que “foi e é o maior autor dos tempos modernos”. Mencionava depois Fernão Mendes Pinto: “figura que, no meu espírito, sempre exerceu fascinação irresistível, e pela qual conservo ainda hoje a mesma admiração.

“Não é só pelo encanto das suas peregrinações – insistia Teixeira Gomes – mas, sobre tudo, pela graça, e cristalina simplicidade do seu estilo, que parece de agora, e pela riqueza e propriedade dos seus vocábulos. Ele introduziu na nossa língua centenas de preciosos e úteis neologismos, que ficaram”.

A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que se lê com a fluência, a agilidade e o imprevisto que deparamos numa grande reportagem – é, sem dúvida, uma das obras mais notáveis da literatura portuguesa e da literatura universal. Encontra-se traduzida nas principais línguas europeias. Revela o homem em toda a sua dimensão e em todas as circunstâncias. Transmitenos, com “a simplicidade sempre tão difícil de conseguir” o que lhe aconteceu ver no contato direto com o mundo.

A ausência do Brasil

Fez parte de uma das primeiras expedições portuguesas que logrou alcançar o Japão em 1542. A chegada de portugueses ao Japão foi muito celebrada e perdura ainda na memória cultural japonesa, também porque permitiu a introdução das armas de fogo naquele país. O próprio Fernão Mendes Pinto descreveu o espanto e o interesse das autoridades locais, quando viram um dos seus companheiros disparar uma arma enquanto caçava.

Ainda pequeno, um tio trouxe-o para Lisboa, onde o pôs ao serviço da casa de D. Jorge de Lencastre, duque de Aveiro, filho bastardo do rei D. João II. Manteve-se aqui durante cerca de cinco anos, dois dos quais como moço de câmara do próprio D. Jorge.

Em 1537, partiu para a Índia, ao encontro dos seus dois irmãos. De acordo com o que relatou na sua obra Peregrinação, foi durante uma expedição ao marVermelho – em 1538 – que participou num combate naval com os otomanos, tendo sido feito prisioneiro e vendido a um grego. Este vendeu-o por sua vez a um judeu, que o levou para Ormuz, onde foi resgatado por portugueses.

Acompanhou Pedro de Faria a Malaca, de onde fez o ponto de partida para as suas aventuras, tendo percorrido, durante 21 acidentados anos, as costas da Birmânia, Sião, arquipélago de Sunda, Molucas, China e Japão, grande parte desse tempo ao lado do pirata António de Faria. Numa das suas viagens, conheceu São Francisco Xavier e, influenciado pela sua personalidade, decidiu entrar para a Companhia de Jesus e promover uma missão jesuíta no Japão.

Em 1554, depois de libertar os seus escravos, foi para o Japão como noviço da Companhia de Jesus e como embaixador do vice-rei D. Afonso de Noronha. Esta viagem constituiu um desencanto para ele. Desgostoso, abandonou o noviciado e regressou a Portugal.

Com a ajuda do ex-governador da Índia Francisco Barreto, conseguiu arranjar documentos comprovativos dos feitos realizados pela pátria, que lhe deram direito a uma tença, que nunca recebeu. Desiludido, foi para a Quinta de Palença, em Almada, onde se manteve até à morte e onde escreveu, entre 1569 e 1578, a obra que nos legou, a Peregrinação. Esta só viria a ser publicada cerca de 30 anos após a sua morte, receando-se que o original tenha sofrido alterações, às quais não seriam alheios os jesuítas. O livro (de 700 páginas) passou também o crivo da Inquisição.

Deixou-nos um relato tão extraordinário que, durante muito tempo, não se acreditou na sua veracidade. De tal modo, que até se fazia um jocoso jogo de palavras com o seu nome: “Fernão Mendes Minto” ou então “Fernão, mentes? Minto!”. A Peregrinação, porém, tornou-se um sucesso, tendo rapidamente dezenove edições em seis línguas.

Na atualidade, Fernão Mendes Pinto é considerado um dos maiores escritores da literatura portuguesa e mundial. Ele contribuiu, ao lado de Luís de Camões, para enriquecer e fazer evoluir a língua portuguesa. A sua vida e obra têm sido tema regular para estudos universitários, um pouco por todo o mundo, nas áreas de História, Antropologia, Geografia, Sociologia, Semântica e Literatura.

Existem ruas com o seu nome em Lisboa, Porto, Montemor-o-Velho, Guimarães, Portimão, Ovar, Freixo de Espada à Cinta e Loures, em Portugal; no Rio de Janeiro e São Paulo, no Brasil; em Luanda (Angola), no Maputo (Moçambique) e na China.

Por António Valdemar