Julho, 2023 - Edição 293

Francisco Acayaba Gê de Montezuma

Um mestiço que venceu preconceitos tornando-se uma das figuras mais importantes do Império

Em época tão trepidante quanto o I e II Reinado, um personagem importante invadiu a cena urbana e a Corte: o “mulato”. A palavra, então, já designava “mistura de branco com preto”, e é encontrada nos documentos da época sem maiores adjetivações. Amácula não advinha da associação com os animais como repetem erradamente alguns. Mas do “baixo nascimento”, da modesta origem familiar. Justamente por designar pessoa de “ínfima condição”, o termo foi ganhando, ao longo do tempo, conotações pejorativas. Mulatos e pardos compunham então aproximadamente 42% da população.

Como poucos sabem, a miscigenação alcançou todos os níveis da sociedade, e, como veremos, mulatos ou pardos ocupavam posições importantes no Conselho de Estado, na Câmara de Deputados, no Senado, nas artes e na literatura. E um desses afro-brasileiros de maior destaque foi Francisco Gomes Brandão, chamado por seus companheiros, desde a mocidade, de Montezuma. Nascido em 1794, em Salvador, filho de Manuel Gomes Brandão, branco, e Narcisa Teresa de Jesus Barreto, negra, ambos baianos e modestos, ele cresceu em Penedo. Seu pai era comandante de um dos brigues que, no fim do período colonial, fazia a rota entre a Bahia e a costa da África traficando escravos. Segundo o desejo paterno, Montezuma deveria se preparar para a vida sacerdotal. Para isso, a família voltou a Salvador e, em 1808, ele entrou para o Convento de São Francisco. Naquela época, a carreira eclesiástica funcionava como um chamariz. Ao conferir “foros de nobreza”, o sacerdócio era sinônimo de prestígio social.

Os métodos de ensino em mau latim e a avalanche de sermões foram suficientes para entediar Montezuma. Por falta de vocação, ele abandonou o claustro. Optou pela Escola Médico Cirúrgica, onde passou três anos. Havia exigências para ingressar na recém-fundada instituição. Além de uma taxa de 6.400 réis, referente à matrícula, requeria-se que os estudantes não apenas soubessem ler e escrever corretamente, mas que também tivessem conhecimento de latim e francês. Esta é uma pista importante, que serve como indicativo de que os estudos de Montezuma não estiveram restritos apenas às primeiras letras.

Em 1816, vamos encontrar o jovem Montezuma em Lisboa, frequentando hospitais ou a bordo de navios negreiros, pois um médico era figura obrigatória na tripulação. No ano seguinte, matriculou-se nos cursos de Direito e Filosofia da Universidade de Coimbra, onde adquiriu fama de bom aluno. Era líder dos acadêmicos brasileiros que seguiam sua personalidade magnética. Foi em Coimbra que Montezuma tomou gosto pelas sociedades políticas secretas, comuns na época, fundando a denominada Keporática ou dos Jardineiros. Suas cores? O verde e o amarelo. Ele seria uma das faces pardas da melhor universidade portuguesa, e seu objetivo era receber formação e, posteriormente, ingressar na magistratura ou em cargos de prestígio na administração metropolitana e colonial. O jovem se formou com notas regulares em mérito literário, mas, graças às suas indisciplinas, ganhou zero em “probidade e prudência”.

Ao regressar a Salvador em 1821, Montezuma mergulhou na política. Tinha 27 anos. Rebelou-se contra a junta provisória que subordinou a Bahia às cortes de Lisboa. Restituir a Bahia ao Brasil para que obedecesse ao príncipe regente foi a maior preocupação da atuação de Montezuma. Por meio de textos incendiários, ele travou uma batalha enraivecida contra a metrópole. Seu talento como redator abriu-lhe as portas do Diário Constitucional. Passou das palavras aos atos quando, em novembro de 1821, participou da conspiração que levou oficiais da guarnição militar a prestar obediência ao governo de D. Pedro I, negando-se a obedecer às ordens de Lisboa. Em janeiro de 1822, ocorreu a eleição para a presidência da Junta Provisória Governativa, encarregada da administração da antiga capitania.

Para o cargo e sem surpresas, venceu o partido independentista. Prevendo o resultado, as cortes portuguesas enviaram reforço militar a Salvador e substituíram o governador de armas eleito pelo tenente-coronel Inácio Madeira de Melo. Montezuma e seu grupo promoveram o impedimento da posse de Madeira de Melo, enquanto explodiam sangrentos combates entre portugueses e brasileiros. Perseguido, Montezuma teve que se esconder, mas não interrompeu a publicação do jornal, que era o órgão dos patriotas brasileiros. Em finais de agosto, o jornal foi empastelado. Com o agravamento da situação de guerra civil entre a comunidade portuguesa e os baianos, ele se juntou aos fugitivos que seguiram para Cachoeira, São Francisco e Santo Amaro, vilas do Recôncavo que tinham se declarado a favor do governo do Rio de Janeiro.

Seu papel combativo no Diário Constitucional deu-lhe um cargo de vereança. Ocupar espaço na municipalidade era algo a que somente indivíduos que gozassem de grande prestígio poderiam aspirar. Mas, tanto a indicação quanto a escolha de Montezuma para integrar o órgão de elite, era um forte indício de que, apesar da origem apagada, nem o nascimento nem o seu modo de vida faziam com que fosse visto como socialmente desqualificado. Eleito e empossado, coube a ele ir ao Rio de Janeiro pedir ajuda a D. Pedro I para a resistência das vilas do Recôncavo.

Ao chegar à corte, Montezuma viu a cidade se preparando para a coroação do Imperador. Ele foi bem acolhido pelo ministro dos Negócios do Império, o então todo-poderoso José Bonifácio de Andrada e Silva, que o convidou a fazer parte do Apostolado da Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz. A sociedade secreta tinha por objetivo defender a integridade do Brasil e lutar por sua independência. Porém, o propósito por baixo do pano era combater o grupo que, se de início havia aceito a monarquia constitucional como atalho para a separação de Portugal, agora queria a República. Recebido pela Câmara Municipal, o baiano foi ali aclamado, e depois, seguido pelo povo, se dirigiu ao Paço, onde foi apresentado à Sua Majestade. O baiano acompanhou a coroação do imperador de perto, honraria dada a poucos Quando lhe foi oferecido o título de barão da Cachoeira, recusou. Não cedia a favores, nem fazia agrados aos poderosos. Em fins de dezembro, voltou a Salvador ainda ocupada pelos portugueses. Levou armamento para a luta, material tipográfico e instruções para a escolha de deputados à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do recente Império do Brasil. Lançou então o jornal Independente Constitucional.

Montezuma foi encarregado de voltar ao Rio, para explicar tais tensões ao imperador. Enquanto, no dia 2 de julho de 1823, as tropas brasileiras entravam em Salvador, no Rio de Janeiro, Montezuma tomava posse como deputado na Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, cargo que conquistou com pequeno número de votos. Missão: realizar a primeira Constituição do país. Ele era dos mais jovens deputados. Ativo, não recuava frente às opiniões dos mais experientes. Seus colegas deputados, que se encontravam na Constituinte, eram em sua grande maioria liberais moderados. Foram eleitos de maneira indireta e por voto censitário e não pertenciam a partidos, que, aliás, ainda não existiam no país.

Rumos políticos levaram os deputados a desejar D. Pedro I como uma figura subordinada à Assembleia. Por trás da disputa entre o imperador e a Assembleia havia uma outra, que foi a real causa de sua dissolução. Desde o início dos trabalhos legislativos, os liberais federalistas tinham como principal intuito derrubar o ministério presidido pelos irmãos Andrada. A 5 de novembro, surgiu o incidente que daria causa à dissolução. Um jornalista, foi surrado por dois militares lusitanos. Tal ofensa contra a liberdade de opinião seria também uma ofensa à nação, insistiam os Andradas. Bonifácio bombardeou a casa com discursos inflamados, acusando os deputados de omissão frente a um atentado ao povo. A reação nas ruas foi uma onda de xenofobia antilusitana, com quebra-quebra e gritaria. D. Pedro mandou que o Exército se preparasse para um conflito. O medo da dissolução da Assembleia se instalou. Na mesma manhã, o ministro Francisco Vilela Barbosa compareceu à Assembleia com um recado: ou os deputados aprovavam medidas para censurar a imprensa e caçavam os Andradas, ou as tropas entrariam em ação.

Durante suas explicações, o ministro ouviu deputados gritando que D. Pedro fosse declarado “fora da lei”. Pela punição que recebeu, Montezuma foi um deles. Ao saber disso, D. Pedro imediatamente enviou o brigadeiro José Manuel de Morais, mulato e futuro ministro da Guerra, que havia se distinguido nas lutas pela independência da Bahia, com um decreto: estava dissolvida a Constituinte. Os irmãos Andrada, Montezuma e mais dois deputados foram presos e levados à fortaleza da Laje a caminho do exílio.

No ano de 1830, começou a segunda legislatura da Câmara. Medidas governamentais eram duramente criticadas. Em abril de 1831, sem conseguir dar soluções aos problemas, D. Pedro abdicou em favor de seu filho Pedro II. Partiu para Portugal levando sua segunda esposa, a princesa Amélia de Leuchtemberg. Nos primeiros meses do mesmo ano, Montezuma voltou ao Brasil. Embora ausente por oito anos, foi eleito para a Assembleia Geral Constituinte em maio de 1831. Tornou-se, então, o primeiro deputado da história brasileira a lutar contra o tráfico negreiro.

Em 1837, a convite de Feijó, Montezuma ocupou o cargo de ministro Plenipotenciário do Brasil na Inglaterra, que exerceu por nove meses. Padre Feijó renunciou à Regência e foi substituído por Araújo Lima, e os anos seguintes foram ingratos para Montezuma. Ele não tinha sido reeleito para o triênio 1834-1837, mas, de 1838 a 1841, integrou a oposição liberal à regência conservadora de Araújo Lima e se empenhou num novo momento político: o da campanha pela maioridade de D. Pedro II.

Ao mesmo tempo que agitava o Clube da Maioridade, Montezuma se envolveu com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, uma verdadeira “ilha de letrados de elite”, composta por um grupo moderado, que apostava na monarquia constitucional. Desde que voltou ao Brasil, Montezuma abandonou o partido liberal e passou a agir de forma totalmente independente. Em junho de 1843, colocou de pé a ideia que alimentava há muito: uma associação que congregasse advogados.

Nasceu o Instituto dos Advogados do Brasil, com sede na Rua do Cano – embrião da OAB. Tinha um programa: colaborar com o governo e o poder legislativo, reformar o código criminal e elaborar um comercial. . Mas não conseguia se manter fora da política. Voltou em 1847 à Assembleia Provincial fluminense, onde saiu no tapa com um brigadeiro, seu desafeto. A partir de 1848, começou a tentar uma indicação para o Senado, pois, da lista tríplice de indicados, o imperador D. Pedro II escolhia um.

Foram anos importantes para o político que lutou, desde 1831, pelo fim do tráfico de escravos. Enquanto D. Pedro II manobrava a elite agrária graças ao Poder Moderador, foi votada, em 1850, a lei do senador e ministro Eusébio de Queirós, proibindo o tráfico. Em 1854, D. Pedro resolveu distribuir títulos a todos os conselheiros de Estado. Deu à Montezuma o de visconde de Jequitinhonha, com honras de Grande do Império e conselheiro de Estado.

A 15 de fevereiro de 1870, às 5h30 da manhã, poucos dias antes de terminar a Guerra do Paraguai e depois de alforriar a duas escravas, Helena e Maria Lucrécia, Francisco Gê Acaiaba de Montezuma descansou. Fechava os olhos um afro-mestiço que se formou em Coimbra, participou diretamente da Independência, foi exilado, viajou por inúmeros países da Europa, foi jornalista atuante, fundador do embrião da OAB e do IHGB, ministro da Justiça e dos Negócios Interiores e ministro Plenipotenciário do Brasil na Inglaterra, respeitado por dois imperadores. Montezuma foi alguém que viveu intensamente a aventura de ser ele mesmo.

Por Mary del Priore é membro do IHGB, IHGRJ, ACP, APL, PEN Club do Brasil.