Julho, 2023 - Edição 293

Conceição

A cultura sul-mato-grossense foi profundamente marcada por duas mulheres notáveis de nome “Conceição”: Conceição dos Bugres e Conceição Ferreira. Conceição dos Bugres era uma escritora primitiva, uma mulher rude, de mãos toscas, cheias de veias e sulcos que se confundiam com a madeira, com a cera das abelhas. Os bugrinhos que criava eram retangulares, cabeças chatas, braços semelhantes a asas curtas e pés esparramados. Mas tinham vida, expressão no olhar, nas barriguinhas estufadas. Tornaram-se verdadeiros símbolos de nosso Estado, totens de nossa identidade cultural. Conheci Conceição há muitos anos, numa tarde de sábado. Fomos, uma turma de moços, ver o seu trabalho. Ela nos atendeu com seu jeito tímido, os longos cabelos grisalhos amarrados no meio das costas, o vestido puído de chita florida. Levou-nos à pecinha de madeira, de chão de serragem, onde colocava os bugrinhos em prateleiras. Pregava-os como se fossem seus filhos, recém-saídos do ventre da terra, como raízes de mandioca. Como eu era jovem naquele tempo! Nem sei se tive a visão da importância daquele momento e daquela artista. O certo é que nunca esqueci daquela tarde de sábado. Da cerca de arame farpado em volta do terreno áspero de cerrado, sem nenhuma árvore. Nem do sol que mergulhava vermelho no lago do Amor. Nem do seu corpo franzino, desconjuntado no trabalho pesado. Nem do formão que ia arrancando lascas, faíscas e sonhos dos pequenos troncos. Escrevi este poema-tributo:

Conceição dos bugres
Conceição transformava madeira em bugres
Numa festa de suor, serragem,
Cera de abelha.
Conceição,
Madrinha das árvores e troncos,
Benta com o estigma de mulher pobre.
Conceição via o sol cair no lago do Amor
Enquanto tomava mate
Na cuia da morte.
Conceição,
Vela consumida até o fim,
Recendendo guavira.
Conceição,
Foi esculpir bugres na noite índia,
Nos riachos puros onde fremem sapos.


Conceição Ferreira foi uma atriz portuguesa, nascida na aldeia de Lardosa, em 1904. Estudou Arte Dramática no “Conservatório Gil Vicente”, em Lisboa. Veio para o Brasil em 1924, primeiramente para o Rio de Janeiro, onde estreou no Teatro Recreio, ao lado de Henrique Brieba. Ingressou na Cia Teatral Oduvaldo Viana e depois na Cia Teatral Maria Castro, viajando por todo norte e nordeste.

Chegou a Mato Grosso em 1928. Percorreu as cidades de Aquidauana, Miranda, Corumbá, Cáceres, Cuiabá, Três Lagoas, Campo Grande, Ponta Porá e adentrou o Paraguai.

Recebeu um convite para filmar “Alma do Brasil”, primeira produção cinematográfica do Estado, sobre a Guerra do Paraguai. Resolve então residir definitivamente em Campo Grande, reunindo um grupo de jovens da sociedade local para formar uma pequena companhia de teatro. Os ensaios aconteciam na residência do maestro Emidgio Campos Vidal, e as apresentações no antigo Cine Trianon.

Conceição Ferreira foi também apresentadora da Rádio Difusora de Campo Grande, PRI-7. Viúva, mudou-se para São Paulo, mas vinha sempre a Campo Grande, onde tinha um filho. Faleceu em 1992, em Campo Grande, cansada e esquecida.

Quando pequena, eu ouvia muito falar dela e de seu marido, José Ferreira, que eram amigos e “patrícios” de meus avós portugueses. Depois, só tornei a vê-la no teatro Glauce Rocha, em meados de 1990, na noite do lançamento do livro “Alma do Brasil”, de autoria do advogado e folclorista, José Octavio Guizzo. O livro é relato de como aconteceram as filmagens desse epopéia sul-mato-grossense. Foi uma noite de glória. Conceição, velhinha, magra e faceira, muito pintada, envolta num xale de seda de fundo negro estampado de flores, subiu ao palco aplaudida de pé, o auditório veio abaixo. Infelizmente, o aparelho enguiçou e não pudemos assistir ao lendário “Alma do Brasil” e à comovente cena da mãe com seu filhinho, num incêndio da macega, protagonizada por Conceição. Minha tia Nicota, de Bela Vista, contou-me um fato inusitado: quando a companhia teatral passava por aquela cidade, os meninos saíam gritando pelas ruas, numa entonação dramática: “Hoje tem espetáculo Conceição Ferreira.” A partir dessa frase, construí o poema:

Conceição Ferreira
A cidade é Aquidauana
Com seu rio de serpentes,
É Corumbá,
Afogada em camalotes,
É Bela Vista,
Vermelha e quente,
Pela praça principal,
Passa o caminhão tosco,
Levando estrados,
Cortinas,
Baús pesados,
É a companhia de teatro;
Um homem grita na boleia:
– Hoje tem espetáculo Conceição Ferreira!
Os meninos acompanham gritando:
– Hoje tem espetáculo Conceição Ferreira!
Prepara-se a sala do cinema:
Cadeiras,
Bancadas,
Degraus,
Lugar para o coro,
Para o piano e o fagote,
Nos cantos, lampiões bojudos,
De gás amarelo,
Chupam mariposas.
Hoje tem espetáculo Conceição Ferreira!
Será uma opereta?
Uma peça dramática com alguma mártir dolorosa?
Uma comédia à La Garçonne?
O importante é ver Conceição,
A lisboeta que canta,
Que afeta,
Misto de bailarina e borboleta.
Hoje tem espetáculo Conceição Ferreira!
Tragam as cabeleiras,
As máscaras,
Os coturnos,
As túnicas com mangas,
As barbas falsas,
As telas dos cenários
E espelhem muito incenso
Nesse ar seco de mato.
Hoje tem espetáculo Conceição Ferreira!
É tudo miragem,
Ilusão,
Fingimento,
Imitação,
Mas parece tão verdadeira essa história
De cabocla bonita.
Hoje tem espetáculo Conceição Ferreira!
Ponham esse anúncio na Rádio PRI-7,
Que é pra todo mundo vir à noite,
Quando a lua acender as estrelas.
Conceição,
Virou fantoche no teatro do mundo,
Mas aqui,
Bem na alma do Brasil,
No centro-oeste
Onde pulsa o coração,
Ainda se ouve o apelo:
– Hoje tem espetáculo Conceição Ferreira!


As sofridas almas de Conceição dos Bugres e de Conceição Ferreira foram purificadas pela luz da Arte.

BIBLIOGRAFIA
GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil. Campo Grande: Imprensa Universitária, 1984.
NAVEIRA, Raquel. Nunca-te-vi. São Paulo: Estações Liberdade, 1991, p. 73