Maio, 2023 - Edição 291

Um Dia Chegarei a Sagres

A literatura de Nélida Piñon (1937-2022) é uma odisseia empreendida com o espírito do tempo. Seu cabedal narrativo possui sagacidade e sensibilidade.

Nélida Piñon arvora as suas metáforas a serviço da aventura vocabular e da feitiçaria verbal, com uma fecundidade estética fascinante. Um dia chegarei a Sagres (Record, 2020) é um romance refinado e épico. Largo murmúrio da história de Portugal, dos hábitos e dos costumes campesinos e da voragem andarilha e dicotômica da vida. Nélida descreve: “Um convite para um dia abandonar o berço onde nasci, após esgotar as agruras do campo.”.

A poética de Nélida Piñon atravessa a fortaleza dos mitos. É um cântico de devoção à língua portuguesa e à força camoniana dos sofrimentos humanos. Seu estilo preserva uma crueldade aflitiva que encanta e consola. Cruzar as quinhentas páginas de Um dia chegarei a Sagres é fazer-se conhecedor de uma herança secular legatária do sangue virulento dos anônimos. Expressa: “E dando trégua à dor, explicou, referindo-se às moedas, que não me ofertava uma herança capaz de livrar-me das adversidades (...).”

A personagem principal, Mateus, que dialoga em primeira pessoa, me entrelaça em sua triste peregrinação, do Minho, no norte de Portugal, fronteira com a Galiza dos espanhóis, até Sagres, no Atlântico, no mar sulino português. A ficção encontra cenário em um Portugal rural, com inscrição no século XIX. A narração segue os seus atos passados, presentes e futuros, em flutuações não cronológicas e arrebatadoras. Mateus é um velho que rememora as perturbadoras passagens rústicas da sua biografia exótica e esclarecedora: “Na velhice se sofre uma espécie de degredo.”.

Identifico algo renovador, quando Nélida Piñon introduz o pretérito profundo, aquilo que está no inconsciente mais remoto da alma lusa: anterior e alegorizado com a history das grandes navegações, da sagração dos animais como deuses, da escravização dos africanos e dos indígenas, da descoberta dos novos mundos, além oceanos, e das recriações sobre a nobreza portuguesa e as suas fracassadas utopias.

Creio que as revivescências de Camões, de Vasco da Gama e do Infante D. Henrique acentuaram as peripécias de Mateus e do seu contínuo lamento de ser um peregrino pobre e gestado no ventre de uma meretriz. Comovo-me com a relação confidente entre o avô Vicente e o neto Mateus revelada em Um dia chegarei a Sagres. O livro traz um testemunho de um afeto invencível, exaltado na memória: “A fortuna é feita de memórias. Vive-se mais do que muitos.”.

Com elegância, Nélida Piñon confabula sobre o erotismo, a paixão platônica, a luxúria carnal entre dois homens (Mateus e o Africano), o desespero errante, o pecado sob o viés do Cristianismo, o segredo inviolável, as visões impuras e as suas manifestações mais cruas. Diz Mateus: “São estes pressentimentos que nos abatem ou distinguem a nossa espécie em meio ao matagal da existência?”.

Sem esquecer os contornos femininos contraditórios e misteriosos como os de Joana, Matilde, Leocádia e Amélia. Faustosamente filosófica e irônica, Nélida Piñon entrega: “O melhor do meu ofício é o que os homens relatam em tom de segredo. São lamúrias que não repetem em casa. Sem falar que juram por Deus jamais voltar ao lar onde são infelizes. Mas para onde irem?”. Um dia chegarei a Sagres é uma acusação ao revés. É sobretudo um discurso sobre a esperança e de como os sonhos e as ilusões movem o coração dos homens.

De maneira magistral, Nélida Piñon conduz uma personagem pelos seus desvelos e expectativas. Depois de Sagres, restará ainda Lisboa e a espera inacabada, assim como as lágrimas e os silêncios desatados pelo destino. Em 2021, Nélida Piñon festejou os seus 60 anos de dedicação ao ofício de escrever, cujo marco fundador é a peça Guia-mapa de Gabriel Arcanjo. Seu périplo é de uma vencedora. Um dia chegarei a Sagres é o coroamento de uma carreira humanística luminosa, que merece todas as honras da pátria e o amor de uma nação inteira.

Nélida Piñon soube ser integral e substantiva, e continua a dar esperanças a seu país visceral, com lucidez e quimera. Uma filha de Homero e uma fidedigna sucessora de Machado de Assis.

A obra, Um dia chegarei a Sagres, lançada no segundo semestre do ano de 2020, já está em sua quarta edição. Somente uma escriba do porte intelectual e artístico de Nélida Piñon consegue esse feito editorial no Brasil. Trata-se de um Clássico e de uma Mulher inesquecível. “Minha forma era humana, mas o espírito assemelhava-se às vezes a um barco prestes a afundar nas cercanias de Sagres, um destino almejado, quando ali aportasse. Diante das ondas encapeladas, aguardaria o chamado do mar.”

Por Diego Mendes Sousa, membro do PEN Clube do Brasil.