Maio, 2023 - Edição 291

Rui, entre o homem e o mito

Desde menino, ouço falar em Rui Barbosa: o brasileiro mais inteligente, baiano genial, o Águia de Haia, que ao chegar à conferência de paz, na Holanda, perguntou em que língua queriam que discursasse, e que, em Londres, pôs na porta da casa um anúncio, “ensina-se inglês”... Histórias que acabam por encobrir a História, processo de mitificação (e de mistificação, também) que, com o tempo, transforma a pessoa em personagem, a vida em lenda, sem que se possa conhecer a dimensão humana de quem deixou de ser gente para virar estátua.

Quando se completam cem anos da morte desse vulto, patrono de academias e louvado em folhetos de cordel, publica-se a segunda edição do livro A Raiz das Coisas: Rui Barbosa – o Brasil no mundo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2023), de Carlos Henrique Cardim. Professor da Universidade de Brasília, diplomata de carreira – foi embaixador do Brasil na Noruega e na Islândia –, busca o autor, com honesta objetividade, mostrar o importante papel de Rui nas novas relações político-diplomáticas do Brasil com o mundo, ao longo das duas primeiras décadas do século XX:
As contribuições de Rui Barbosa à teoria e à prática da política externa brasileira estão, principalmente, em três temas e momentos: na defesa da igualdade entre os Estados, na segunda conferência de paz de Haia, em 1907; na crítica à noção antiga de neutralidade, numa conferência em Buenos Aires, em 1916; e no debate sobre a Primeira Guerra Mundial e a mudança de posição do Brasil, de 1914 a 1918. A par dessas ações, defende, em 1919, ao disputar pela segunda vez a presidência da República, projetos que ainda hoje movimentam campanhas pelo Brasil afora:
De forma pioneira, insere em sua plataforma de candidato temas como construção de casas para operários; proteção ao trabalho de menores; limitação das jornadas laborais, em especial do trabalho noturno; igualdade salarial para ambos os sexos; amparo à mãe operária e à gestante; licença-maternidade; indenização por acidentes do trabalho; legalização do trabalho agrícola e seguro previdenciário.

Com uma biblioteca de 35 mil volumes a enobrecer a casa da rua São Clemente, 134, no Rio de Janeiro – sede da fundação que lhe traz o nome, criada em 1930 –, Rui os tinha mais para ornamentar o próprio texto do que para alimentar sua vastíssima cultura, como bem observa Oliveira Vianna, citado por Cardim:
Sem a sua biblioteca, seria, talvez, mais vigorosamente original, mais poderosamente inteligente e criador do que foi. Os livros, propriamente, antes lhe enfeitavam o saber, não lhe davam. É aqui, talvez, que se encontre a razão deste gosto de erudição que era tão característico de Rui e que dava, a muitos, a impressão de que lhe faltava capacidade de criação original, e, a outros, de vaidosa ostentação de saber.

Se perdidos no passado os longos discursos a que não resistia a paciência alheia, Rui parece, às vezes, surpreendentemente atual, como ao criticar o sistema de governo presidencialista, o “mais tirânico e o mais desastroso dos regimes conhecidos: a República presidencial com a onipotência do Congresso; o arbítrio do Poder Executivo, apoiado na irresponsabilidade das maiorias políticas; a situação autocrática em que se coloca, neste sistema, o chefe de Estado”. Problemas para os quais só vê um remédio: “A majestade inviolável da Constituição escrita, interpretada, em última alçada, por uma magistratura independente.” Quanto a jogar na fogueira os arquivos da escravidão, o ponto de vista lembrado é o de Francisco de Assis Barbosa: “O ato que mandou queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos a escravos, nas repartições do Ministério da Fazenda, teve por finalidade eliminar comprovantes de natureza fiscal que pudessem ser utilizados pelos ex-senhores para pleitear a indenização junto ao governo da República.”

Justificativa perfilhada por Cardim: “Essa decisão, até hoje severamente criticada por vários historiadores, salvou a República nascente, ao contribuir para viabilizar, de fato, o Estado brasileiro.” A nova edição de A raiz das coisas: Rui Barbosa – o Brasil no mundo é enriquecida por trechos da correspondência telegráfica entre o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa, durante a Segunda Conferência da Paz de Haia, em 1907. Foram 367 telegramas – 194 de Rio Branco, 173 de Rui –, mais de dois por dia, em média, pelos quais os dois homens públicos trocavam ideias e definiam os votos do Estado brasileiro em favor da igualdade das nações, da Corte Permanente de Arbitragem estabelecida na Primeira Conferência, em 1899 – e da entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial. Mensagens, ouvi do autor, que se encontravam cobertas de poeira em um armário do Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro, condenadas a ser destruídas pelo tempo ou por algum funcionário avesso a papéis velhos... Salvos por Cardim, são documentos que atestam a altivez com que a representação brasileira devia atuar naquele fórum internacional, como se lê no telegrama 55, mandado pelo Barão do Rio Branco:
“Vossência deve procurar proceder de modo a que nenhum outro país do nosso ou de outro continente nos preceda nas declarações que a nossa dignidade de nação nos impõe e que apresente logo a proposta substitutiva de acordo com as nossas ideias (...)” O assunto, às vezes, era menos relevante, como na mensagem em que Rui sugere a dispensa de um assessor estrangeiro que não lhe faria falta:
“Secretário francês considero inteiramente inútil: dele nunca me utilizei. Concordando Vossência poderia determinar Leoni o despedisse substituindo-o por um taquígrafo-datilógrafo que me poderia ser de utilidade.”

Há, é claro, quem não canonize o Águia de Haia. Escrito por R. Magalhães Júnior, Rui, o Homem e o Mito (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964) obrigara-o, segundo declarou, a vinte anos de pesquisa. Em mais de 400 páginas, o biógrafo nega ao brasileiro o pioneirismo da defesa do militar Dreyfus, condenado na França por traição, tacha-o de nepotista e de virar a casaca sobre o monopólio de serviços públicos, quando se tornou advogado da Light. A reação foi intensa: um baiano, mais indignado, propôs se expulsasse o autor da Academia Brasileira de Letras, que tornou pública a sessão em que se discutiu a obra. Quanto ao biografado, não se poupam críticas:
“Vez por outra, falto de assunto, queria brilhar pela forma bombástica, pelo estilo castigado, pela riqueza vocabular, escrevendo bonito, para deslumbrar os leitores, num gasto pródigo de palavras raras (...) Cultivava com garbo o verbalismo, a altissonância, o palanfrório, num jogo de palavras que, muitas vezes, escondia apenas a pobreza geral das ideias.”

Com exemplos do que se publicou em jornais estrangeiros sobre a cúpula internacional de 1907, na Holanda, afirma R. Magalhães Júnior: “O que transparece de tudo isso é que nem a Conferência de Haia foi um acontecimento de extraordinária transcendência para o mundo nem Rui Barbosa, delegado brilhante e, por vezes, impertinente falastrão, na verdade não recebeu consagrações unânimes e apoteóticas, como aqui se procurou fazer crer, através de uma propaganda tão eficiente quanto exagerada e mistificadora.”

A resposta não se fez esperar: Osvaldo Orico assevera que não levou mais de vinte dias para entregar à editora Rui, o Mito e o Mico (Rio de Janeiro: Record, 1965), cujo título, por citar o pequeno macaco, é maldosa e deselegante alusão à pouca beleza do confrade acadêmico, feiura da qual a própria vítima fazia piada. Acusa-o de mamar “o leite gordo da ditadura” nas tetas do DIP, o Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo de Vargas, e quer saber:
Que pretendeu o autor de Rui, o Homem e o Mito? Se desejava retificar o juízo da história e reformar o conceito da posteridade, teria de trazer para o debate provas irrefutáveis, documentos novos inéditos. Em vez disso, pôs a serviço de uma causa ingrata suas conhecidas habilidades de jornalista e pesquisador, valendo-se de acusações cediças e sovadas que, se não vingaram em vida de Rui, menos vingariam depois do seu desaparecimento, quando o respeito humano exerce biologicamente em nós a obediência àquele conceito de Plínio, o naturalista: “Só os vermes atacam os mortos.”

A Osvaldo Orico junte-se Salomão Jorge, com o seu também panfletário Um Piolho na Asa da Águia (São Paulo: Saraiva, 1965). Surpreende não se encontrem, os dois, na extensa e substanciosa bibliografia de que se valeu Carlos Henrique Cardim para homenagear Rui Barbosa. Afinal, nem sempre de bons textos se faz a história de personalidades que despertam paixões, sobretudo aquelas que se colocam entre o homem e o mito. Não é o caso, evidentemente, de A raiz das coisas: Rui Barbosa – o Brasil no mundo, escrito com o rigor e a honestidade intelectual que se esperam de um ensaio digno de leitura. A razão de ser do livro é dada pelo próprio autor, ao citar pesquisas de opinião em que se elege o biografado um dos maiores brasileiros de todos os tempos: Apesar dessa relevância, pode-se afirmar – sem desprezar contribuições expressivas como as de San Tiago Dantas, Luís Viana Filho e Bolívar Lamounier – que Rui ainda é, parcialmente, conhecido, e que tem sido um personagem mais distorcido, folclorizado, que, propriamente, estudado e analisado. É evidente a atualidade de Rui e a necessidade de se aprofundar o conhecimento sobre seu pensamento e ação, centrados na criação de um Estado republicano brasileiro democrático, progressista e participante ativo do sistema internacional.

Por Edmílson Caminha