Maio, 2023 - Edição 291

Dona Olímpia de Ouro Preto

“Chega um momento em que a vida é distância, e tudo é tarde.”
Abgar Renault, no poema Última Thule

Dona Olímpia – quem diria? – virou tema de escola de samba da Mangueira e brilhou na Avenida Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, em 1990. Na verdade, o fato não foi de todo surpreendente, já que Dona Olímpia era uma figura alegre, carregada de flores e com aquele grande chapéu florido, e senhora de uma boa e animada conversa. Sua presença despertava eflúvios positivos; a grande bengala, em feitio de cajado peregrino, era toda ornamentada e aquele imenso chapéu, embora muito usado, tinha algo de primaveril e de parque num domingo ensolarado.

Pois eis que a nossa saudosa Dona Olímpia virou “Sinhá Olímpia” e ganhou enredo sob o título de “E deu a louca no barroco”. De fato, o barroco acabou prestando- -se a tudo o que é meio confuso, complicado, meio rococó e “embolado”. Mas o barroco é arte séria, sacra e bela, terreno dos mestres escultores mineiros Hélio Petrus e Elias Layon, moradores de Mariana.
E neste ponto da conversa eu me lembro do trecho de abertura, à guisa de epígrafe, desse livro delicioso que é Pierre-Auguste Renoir, meu Pai, do cineasta Jean Renoir:
“O Leitor – Não é Renoir que o senhor nos apresenta, é a sua própria concepção de Renoir. O Autor – Com certeza. A História é um gênero essencialmente subjetivo.” O diálogo acima vale uma tese de mestrado em História, não lhes parece?
Cá eu não me meto nessas altas cavalarias. Só monto burrinho manso, como Sancho Pança. E só transcrevo o trecho para aduzir que assim deve ter sido com a figura de Dona Olímpia tratada na letra, no enredo da Mangueira. Vale dizer: de certa forma, saudável mistura de impressões, concepções, imagens, transfigurações, um jogo de cenários do inconsciente coletivo e outras preciosidades junguianas, sei lá o que digo. E depressa volto ao meu burrico de trote manso.

A Sinhá Olímpia dos sambistas é um quadro da Ouro Preto lírica, de que tratou Afonso Arinos de Melo Franco (há a Ouro Preto grave, tratada pela pena do historiador Diogo de Vasconcellos). Tanta gente escreveu sobre Ouro Preto – até o poeta e cronista Manuel Bandeira lhe dedicou um livro, o utilíssimo Guia de Ouro Preto. Naquela cidade nasceu, em 1870, o grande poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, falecido em Mariana em 1921.

Na verdade, a nossa saudosa Dona Olímpia, que as montanhas de Minas não esconderam, era assim como uma espécie de contrafação carnavalizada de dama antiga, com suas longas saias anacrônicas, bordão florido e empenachado, vasto chapéu ornamentado de miçangas e penduricalhos, a fumar um eterno cigarro que todos lhe davam com satisfação.

Ela perambulava pela histórica cidade, especialmente na Praça Tiradentes, muito antes de Ouro Preto tornar-se um grande polo turístico. Era como um vulto legendário de outras épocas, a compor o cenário das belas igrejas e dos velhos sobrados e solares do tempo da musa Bárbara Heliodora, da outra musa Marília de Dirceu, do ouvidor Gonzaga, dos heróis da Inconfidência, dos embuçados que à noite recomendavam a fuga dos implicados na conjura infeliz, do tempo do assassinato do poeta Cláudio Manoel na Casa dos Contos… Ele não se suicidou: morreu de “morte matada”, pois era um arquivo vivo da malograda sedição contra o Reino de Portugal.

Dona Olímpia era uma remanescência, como figura humana ímpar, de uma mítica Vila Rica do Pilar em cujas ruas, outrora, “retumbaram hinos” (Raimundo Correia), com muito coche fidalgo nas pedregosas calçadas, sinos batendo e sinhazinhas em flor pelas janelas.


Na pia batismal, nossa famosa mineira recebeu o nome de Olympia Angélica de Almeida Cotta. Naquele ano de 1990, a Agência O Globo publicou um texto de que retiro o trecho abaixo, por ilustrativo:
“A partir de meados da década de 40, quando começou suas andanças pelas ruas de Ouro Preto – com roupas de cores vivas que misturavam um luxo de gosto duvidoso com trapos, o cajado enfeitado e os cabelos coloridos de azul, vermelho ou cor de rosa, sob os mais extravagantes chapéus –, a simpática velhinha de mente fantasiosa, que misturava os tempos da História, ganhou fama. Para alguns, era louca; para outros, sábia. E há, ainda, os que a consideram a primeira hippie do Brasil.” E prossegue o redator (cujo nome não está registrado): “Em seu mundo imaginário, Olímpia acreditava ser a favorita de Dom Pedro II e parente do Conde d’Eu. Afirmava que recebera de fidalgos e cavalheiros diversas declarações amorosas e que frequentara bailes e saraus. Nos últimos dez anos de sua vida, até morrer, em 1976, aos 87 anos de idade, Dona Olímpia transformou-se em atração turística da cidade. Foi muito fotografada e apareceu até em jornais do exterior; virou mesmo cartão postal da cidade.”

A historiadora Guiomar de Grammont também cuidou do fascinante assunto. É de sua lavra o texto abaixo, ilustrado por uma foto de Dona Olímpia que está no Museu Casa Guignard, em Ouro Preto:
“Esfuziante e bela, com sua poderosa presença, Olympia Cotta criou um estilo único. Em sua figura reunia, a um só tempo – como ninguém jamais o havia feito antes - a grandeza das cortes do passado e a riqueza psicodélica do universo hippie que coloriu as ruas do Brasil marcado pela dureza da ditadura. Assim, Olympia reunia tempos diferentes: o universo mágico e galante em que se passavam suas histórias e o delírio woodstockiano dos jovens hippies que transitavam pela cidade na época. Ela inventava, ousava, reciclava, misturava papel e cetim, madeira e renda, luxo e lixo. Impossível não olhar para ela quando sua persona estupenda assomava do fundo de alguma ladeira de Ouro Preto.”

Tenho nas minhas estantes um singelo e delicioso livro intitulado Ouro Preto Também para Crianças, de Maria Zélia Damásio Trindade, com capa e ilustrações do consagrado artista plástico Cláudio Martins, uma edição de 1977 da Editora Lemi, de BH. Com contracapa assinada pela grande e saudosa escritora Lúcia Machado de Almeida, irmã de Aníbal Machado e autora do celebrado livro Passeio a Ouro Preto. Pois bem, nas páginas 85/86, sob o título “D. Olímpia” vamos encontrar um bom painel da excêntrica personagem:
“Dona Olímpia Cota era figura conhecidíssima por todos quantos visitavam Ouro Preto; focalizada por jornalistas, pintores e fotógrafos em seus trabalhos. Com seu chapelão, seu bastão todo cheio de papéis coloridos, o cigarro na mão e o xale nos ombros, lá estava ela, conversando com os turistas e a gente do lugar.

– Ah!, ‘minha nega’! Eu sou sobrinha do Frei Santa Rita Durão, aquele escritor famoso! Família nobre, a minha. Já fui muito bonita e rica. Já, sim! Não viu meu retrato quando moça, ainda não?” E lá ia, pedindo um cigarrinho ou dinheiro aos turistas, proseando e posando com eles.

Dona Olímpia era uma figura simpática, sempre bem acolhida, quer pelos ouropretanos, quer pelos turistas. Parece que se referem a ela estes lindos versos de Murilo Mendes: “A viúva de Ouro Preto sobe a rua cantando, apoiada ao bastão, na cabeça um penacho de três cores, vestido velho e desbotado cuja invisível cauda arrasta com desdém. A viúva de Ouro Preto fala em frases cifradas, pesa em partes iguais o mito e a realidade, o passado e o presente, a alegria e a tristeza, rico e pobre entretém com igual polidez, declara que decide a guerra no estrangeiro. A trama de sua vida é feita de fantasmas que só se extinguirão no seu último dia.”

Maria Zélia esclarece que este é um trecho do poema de Murilo Mendes intitulado “Motivos de Ouro Preto”. E a autora conclui sua página assim: “E o seu último dia já chegou. Que pena que não a conheci! Dela ficaram nomes de casas comerciais, de uma escola de samba, cartões, esculturas, até personagens de peças teatrais e musicais. Dona Olímpia já virou História.”


Quero registrar nestas linhas que o primeiro livro que conheci sobre a antiga Vila Rica foi o Ouro Preto e Conhecendo Ouro Preto, de Eponina Ruas. Quem foi essa autora? Ela era uma médica pediatra que morava naquela cidade e ia muito à minha cidade natal de Mariana. Meus pais tinham com ela boas relações. A Dra. Eponina Ruas, que vi várias vezes andando a pé por Mariana, atendendo aos pacientes, era uma senhora de pequena estatura, discreta, arredia, de pouca conversa e – soube depois – muito culta. Revejo-a, como num sonho antigo, andando pelas ruas, com sua maleta de médica na mão.

Por falar em Ouro Preto, onde trabalhou o célebre escultor Aleijadinho, onde versejaram os árcades poetas da Inconfidência, aproveito o ensejo para destacar cinco livros de importância histórica, sociológica e literária. Esse quinteto compõe a Série Ouro-pretana da Editora Liberdade, que funciona naquela histórica urbe, sob a direção do casal de professores universitários e escritores Arnaldo Fortes Drummond e Maria Francelina Ibrahim Drummond.

São eles: Memórias de Ouro Preto, de Lauro Sérgio Versiani Barbosa e Humberto Dornelas; Da Poesia à Reportagem, de Hermínio Barbosa; Sinos de Ouro Preto, de Arthur de Brito Machado; Poesia Enquanto Costume, de Maria Francelina Ibrahim Drummond (org.) e Terra Adotada: Relato de um imigrante, de Antônio Francisco dos Reis.


Assim, conforme ela foi descrita linhas acima, eu conheci pessoalmente, nos outroras da minha vida, a impressionante figura de Olympia Angélica de Almeida Cotta. Foi assim que eu a vi numerosas vezes, ao longo de dois anos, quando, em Ouro Preto, estudei interno no Colégio Arquidiocesano, em 1956 e 1957. Eu faria 14 anos de idade no fim de 1956. Era, portanto, pouco mais que um menino, um rapazote.

Naquele tempo, havia poucos turistas na antiga Vila Rica, estava longe de acontecer o I Festival de Inverno. Se durante a semana o comportamento era bom no internato (misto de seminário e quartel), tínhamos folga domingo à tarde para percorrer a cidade. Às 18 horas, toque de recolher. Mesmo com escassos cobres no bolso, só uns caramingaus para um sorvete e um café com pão de queijo, era bom zanzar subindo e descendo aquelas históricas ladeiras. Sempre encontrávamos Dona Olímpia fumando e proseando, rindo e contando casos, com aquela voz meio grossa, rouquenha, na Praça Tiradentes, seu point preferido, seu palco predileto, pois ela era, demente ou sábia, ou ambas as coisas, uma atriz.

Corria a lenda: Dona Olímpia fora uma formosa donzela, muito bonita na juventude. Ficara meio desequilibrada por ter um amor contrariado, era até de família aristocrática – histórias assim, que passavam de boca em boca para acicatar o imaginário popular e inspirar artistas e outras almas sensíveis e romanescas. Só um exemplo: sua singular figura extemporânea seduziu o talento de um artista como Orózio Belém, que lhe desenhou o retrato num crayon reproduzido na edição do jornal carioca O Dia, de 1º de março de 1990, ilustrando uma reportagem de Rose Esquenazi.

Pois é, minha antiga e risonha interlocutora transpôs alegremente as montanhas de Minas para, transfigurada num carnavalesco delírio “barroco”, com o nome de Sinhá Olímpia, ganhar ainda maior dimensão nacional via rádio, TV, revistas e jornais, o que ela, viva fosse, muito apreciaria, já que, afinal, sempre foi destaque. E continua sendo uma estrela a brilhar no céu de Ouro Preto, do Itacolomi ao Alto das Cabeças, passando pela Rua Paraná, Rua Direita, Rua São José, Praça Tiradentes, com o antigo Palácio dos Governadores, a estátua do herói nacional supliciado no Rio e o Museu da Inconfidência.

Agora, como escreveu o poeta Abgar Renault, “tudo é tarde”. Adeus, Dona Olímpia. O antigo rapazote, hoje quase octogenário e avô de dois netos e duas netas, sente saudade das nossas amáveis conversas, Dona Olímpia, lendária estrela de Minas…

Por Danilo Gomes, membro da Academia Mineira de Letras. (Brasília, 07/09/2020).