Abril, 2023 - Edição 290

Entrevista com Rosana Lanzelotte

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura

Bicentenário da Independência



Arnaldo Niskier: Hoje, com uma alegria muito grande, recebemos a visita da pesquisadora e musicista Rosana Lanzelotte, a maior cravista brasileira, muito conhecida no Brasil e no exterior. Como você tem participado das comemorações do Bicentenário da Independência?

Rosana Lanzelotte: Esses 200 anos têm um significado especial para os músicos, porque D. Pedro I, entre as facetas menos conhecidas, era músico, era compositor. Deixou inúmeras obras, uma delas acho que quase todos os brasileiros conhecem, o Hino da Independência, que cantamos com muita alegria, porque é um hino muito inspirado. Fico muito feliz de ter participado de diversos espetáculos em homenagem a D. Pedro I e de ter preparado esses 200 anos, desde o ano passado, com o resgate de todas as partituras conhecidas de D. Pedro, que estão gratuitamente disponíveis por meio do Musica Brasilis. Várias se perderam. Quando digo todas as conhecidas, foram as que nos chegaram até hoje nos arquivos intactas, principalmente aqueles manuscritos com a caligrafia reconhecida dele, de obras litúrgicas, que estão no arquivo do Cabido Metropolitano, da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro. Temos um manuscrito precioso do Hino da Independência, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Arnaldo Niskier: Ele escreveu isso aqui no Rio ou lá em Petrópolis?

Rosana Lanzelotte: Ele escreveu aqui no Rio. Essas obras, que estão aqui no arquivo da Catedral e o Hino, ele escreveu antes de partir para Portugal, portanto aqui no Rio iniciou sua carreira de compositor. Mas sabemos que ele deixou, além dessas obras que se perderam, porque no catálogo do seu professor... Ele teve dois eminentes professores, na fase adulta da sua vida, que foram o grande compositor português Marcos Portugal e o Sigismund Neukomm, que foi o austríaco que veio junto com a missão artística francesa. Por meio do catálogo de obras dele, sabemos que D. Pedro teria composto valsas, em 1816...

Arnaldo Niskier: Além do Hino da Independência.

Rosana Lanzelotte: Além dos hinos, além das obras sacras, litúrgicas, além de uma abertura, da qual posso falar também, escreveu valsas que se perderam, porque Neukomm escreveu em seu catálogo “fantasia orquestral sobre uma valsa de autoria de Sua Alteza Real, o príncipe D. Pedro”. Ele já sabia, em novembro de 1816, que seria esposo de D. Leopoldina, ela já tinha sido, digamos, identificada como sua noiva escolhida entre as Habsburgo. Então, quem sabe fico fantasiando que ele teria escri to essa valsa pensando na noiva que ia chegar. Aproveito esses 200 anos para trazer à luz esse D. Pedro que poucos conhecem, que é um belo compositor que usou seu talento a serviço do Brasil. Em vários momentos, ele usa a sua arte para dignificar o Brasil por meio dos hinos, através da missa em homenagem ao Papa Leão XII, que foi escolhido Papa, em 1823.

Arnaldo Niskier: Quando ele foi para Portugal, para assumir também uma função importante no comando do país, ele continuou a compor, como o fez aqui no Brasil?

Rosana Lanzelotte: Compôs pouco, quando ele saiu do Brasil. A única obra que me chega até hoje é o Hino a Amélia, estava exatamente a caminho de Portugal em 1832 para destronar...

Arnaldo Niskier: As longas viagens transoceânicas.

Rosana Lanzelotte: Não, ele já tinha ido para Paris, inclusive uma história muito interessante da passagem dele por Paris que tem a ver com a música. Mas entre Paris e Lisboa ele passa pelos Açores e vai reconquistar o trono português para sua filha, Maria da Glória, nascida Maria da Glória, no Rio de Janeiro, consagrada na Igreja do Outeiro da Glória, por isso Maria da Glória, que se tornou a grande rainha Maria II de Portugal. A única rainha europeia que nasceu nas Américas e que também era musicista, compunha como ele. Poucas obras se conhecem dela, mas compunha razoavelmente. Tive a felicidade de tocar uma peça dela quando se comemorou 200 anos. Era filha da D. Leopoldina com D. Pedro, a filha primogênita, nasceu no Rio de Janeiro, em 1819. Então, temos também que admirar o D. Pedro que lutou pelos tronos e deixou a filha primogênita no trono de Portugal, foi uma grande rainha, era chamada de A Educadora, porque a ela se deve o estabelecimento do ensino gratuito para crianças, público. E deixou D. Pedro II no Brasil, que também admiro muito como imperador.

Arnaldo Niskier: D. Pedro II foi uma figura extraordinária, 49 anos de comando do governo brasileiro, quase 50 anos, meio século, uma coisa extraordinária. Você também é descendente de nobres portugueses?

Rosana Lanzelotte: É muito oportuna essa pergunta, nesses 200 anos da Independência, porque o governador da Bahia, que recebeu D. João, em 1808, foi o Conde da Ponte, que era um Saldanha da Gama de quem descendo diretamente.

Arnaldo Niskier: Conheci o almirante Saldanha da Gama.

Rosana Lanzelotte: Que é da família também de um outro ramo, um primo distante. Aquele Conde da Ponte foi quem assinou o decreto da abertura dos portos. E o filho dele, Luiz de Saldanha da Gama, que estava atrás de D. Pedro, naquela famosa ilustração do Grito do Ipiranga. O segundo personagem na tela é o Luiz de Saldanha da Gama, que é o filho do Conde da Ponte. Também tem uma herança musical, porque na família da minha mãe há vários músicos amadores, um compositor do século XIX, Saldanha da Gama, deixou valsas que estão na Biblioteca Nacional e meu pai também é músico amador.

Arnaldo Niskier: O cravo entrou nas comemorações do Bicentenário da Independência. Como foi isso, Rosana?

Rosana Lanzelotte: Teve uma grande oportunidade para o projeto Musica Brasilis de resgatar todas as partituras conhecidas de D. Pedro I. E assim começamos, neste ano, um projeto gigantesco, serão 5 mil novas partituras, o projeto Acervo Digital de partituras brasileiras com o apoio do Instituto Cultural Vale e do BNDES. D. Pedro é quem abre essa coleção de 5 mil partituras, como compositor, pudemos editar, resgatar e tornar acessível pela web gratuitamente todas essas partituras, que estão sendo tocadas e gravadas, para nossa alegria, por orquestras de todo Brasil e mesmo fora do Brasil. A Filarmônica de Minas Gerais gravou um álbum todo dedicado a D. Pedro I com as partituras do Musica Brasilis e levou esse espetáculo a Lisboa, num concerto comemorativo dos 200 anos. Há outros grandes compositores que estamos também valorizando nessa iniciativa, todas as aberturas orquestrais de Carlos Gomes, várias obras de Henrique Alves de Mesquita, um compositor muito valoroso, do século XIX, que é praticamente desconhecido, porque, como é mestiço, as obras dele foram pouco editadas. Então, Musica Brasilis faz essa ponte entre as partituras manuscritas dos arquivos e os músicos.

Arnaldo Niskier: Qual é a origem do Musica Brasilis? De onde vem o Musica Brasilis?

Rosana Lanzelotte: MusicaBrasilis vem da minha tentativa de juntar minhas competências musicais e tecnológicas num portal a serviço da música brasileira. Quase 80% dos nossos repertórios estão ainda em formato manuscrito e os músicos, quando vão fazer o concerto, não vão num arquivo buscar um manuscrito para incluir no seu programa de concerto.

Arnaldo Niskier: E o manuscrito pode ser perdido.

Rosana Lanzelotte: Além disso, são frágeis. Então, a única forma do público conhecer as obras é os músicos terem acesso a uma versão, uma edição moderna, que é o que Musica Brasilis faz. E mais, apostamos diretamente na difusão via web, porque cada vez mais músicos estão tocando com seu tablet, com seu equipamento eletrônico. Com isso, temos oportunidade de difundir para todo mundo, temos mais de 45 mil acessos mensais de músicos de todo o mundo. Chegam consultas de todas as partes do mundo, pedindo repertórios que ainda não temos. Fico muito feliz de cumprir essa missão e preencher essa lacuna tão grave da música brasileira, que é a dificuldade de acesso às partituras.

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura