Abril, 2023 - Edição 290

Casos da Fazenda do Retiro

(Ao amigo Napoleão Valadares, escritor e fazendeiro)

Jornalista e escritor, Villas-Boas Corrêa nasceu no Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca, em 2 de dezembro de 1923. Na pia batismal, Luiz Antônio VillasBoas Corrêa. Faleceu na cidade natal em 15 de dezembro de 2016, aos 93 anos de idade. Formou-se em Direito pela UFRJ, em 1947. Foi jornalista político por toda a vida, desde 1948. Trabalhou em vários jornais, como A Notícia, Diário de Notícias, Jornal do Brasil, O Dia, O Estado de S. Paulo (foi diretor da sucursal no Rio de Janeiro). Integrou também os quadros da Rádio Nacional. No Jornal do Brasil, foi editor de política. Tornou-se figura de relevo na TV Manchete. Casado com Regina Maria de Sá Corrêa e pai do jornalista Marcos Sá Corrêa e do professor Marcelo Sá Corrêa. Publicou dois livros: Conversa com a Memória – A história de meio século de jornalismo político (Editora Objetiva) e Casos da Fazenda do Retiro (Editora Objetiva), um livro de reminiscências da infância e mocidade, com “orelhas” escritas por seu pai, o jurista Merolino Corrêa.

Casos da Fazenda do Retiro foi editado pela Objetiva, do Rio de Janeiro, em 2001. À guisa de prefácio, encontramos uma breve carta de Otto Lara Resende para o autor, enviada em 4 de janeiro de 1984. Eis um trecho: “Foi um belo presente de Natal, que me deu inesquecíveis momentos de prazer, de verdadeira delícia. Pois o seu livro é delicioso. Os casos são todos excelentes. Li e reli. E voltarei a ler. E já contei alguns, quase com o mesmo sucesso que você tão justamente alcançou com os seus netos. Tudo é de primeira qualidade. Quanta gente boa! Que maravilhosa infância, que saudosa fazenda! Curti até a fotografia, que longamente namorei.

Casos da Fazenda do Retiro vai ficar entre os clássicos do memorialismo infantil, a partir de Minha Vida de Menina, da Helena Morley. Você não tem nada que ficar desconfiado. Tem é de ficar orgulhoso e feliz. Pois você deu uma alegria para sempre a muita gente. Entre os seus leitores fiéis e admiradores inabaláveis, conte este seu velho companheiro. Você guardou um tesouro no coração e dele nos faz sócios permanentes. Obrigado.”

Tinha razão o mestre Otto. As crônicas memorialísticas, em forma de casos, revestem-se da melhor qualidade literária. São narrativas em linguagem coloquial e caseira, cheias de humor e de saudade de um tempo pretérito e abolido, o tempo da infância e primeira mocidade de Luiz Antônio Villas-Boas Corrêa de férias na fazenda do avô materno, coronel Arthur Cruz, no município mineiro de Cataguases, terra dos poetas modernistas chamados Ases de Cataguases e do poeta e ficcionista Ronaldo Cagiano.

A fazenda e suas guloseimas salgadas e doces, pastos, matas, aguadas, rios, cachoeiras, currais, cavalos, bois, novilhas, alguns animais xucros e bravos, domados por grandes e valentes empregados, como Antônio Martins. As caçadas de pacas, com cães paqueiros de grande valentia ajudando os caçadores. Aventuras nos cafundós da Serra da Onça. Alcides comendo carne de jararaca, até passar mal e quase morrer (“o corpo empolado em calombos, vômitos, intestinos em guerra”). Era no tempo da “luz frouxa de lamparinas de querosene”, tempo dos namoricos, das viagens de trem de ferro da Leopoldina, do Rio a Cataguases. Era no tempo das cantigas roceiras, no tempo dos eixos chiantes das grandes rodas dos ronceiros carros de boi…

Como está na contracapa do livro: “São 21 relatos curiosos, divertidos, autênticos e emocionantes sobre a época áurea da fazenda do Retiro.”

As dobras do volume, suas “orelhas”, foram escritas pelo pai do autor, o conhecido jurista desembargador Merolino Corrêa, genro do coronel Arthur Cruz. Escreve o Dr. Merolino:
“Meu filho, o jornalista político Villas-Boas Corrêa, nome assaz conhecido na imprensa brasileira, quer associar-me (aliás, já o fez, pois fui envolvido no contexto de suas singelas recordações), como testemunha dos fatos e peripécias de sua infância, parcialmente vividas, em períodos de férias, na fazenda do Retiro, que se constituía de muitos alqueires e ficava situada nos altos paradisíacos da Serra da Onça, no município de Cataguases, Zona da Mata.”

Mais adiante, o Dr. Merolino Corrêa acrescenta:
“Em Alma do Tempo, Afonso Arinos deixou claro que escrever livro não é ato de vaidade. É obrigação de solidariedade. VillasBoas Corrêa vaidoso não é. Se não há engano, escrevendo o modesto livro sobre o Retiro, retratou-se fielmente como sentimental, para quem a saudade é a memória do coração. Bastará ler o que ele, estreando na literatura, expôs: a pureza do seu próprio sentir, do seu amor à simplicidade e à família Costa Cruz, onde seu pai, viúvo, encontrou a dedicada companheira de sua velhice, Carlota.” Na porteira de entrada de seu saboroso livro, Villas-Boas Corrêa escreve:
“Meus netos Joana e Rafael, pela altura dos cinco anos, começaram a exigir do avô, nas noites frias de Nova Friburgo ou nos calorões do Rio, histórias para chamar o sono. Tentei as alternativas da leitura de livros e apelei para a invenção de enredos. Mas as histórias lidas não tinham vida e às inventadas faltava o molho da verdade. Até que descobri que lá no fundo da memória, em prateleiras cobertas pela poeira do esquecimento, jaziam em desuso muitos casos do Retiro. Desencavei os meus fantasmas de infância e da juventude, ressuscitei meus mitos, boli nas minhas saudades. Pelo jeito, deu certo. Pois a Joana e o Rafael já não me pedem mais que simplesmente conte histórias de fechar pálpebras. Mas reclamam com exata precisão: – Vô, conta um caso do Retiro.”

E vovô contava, recordando o passado feliz. Muito tempo depois dessa contação de casos para seus netos, Villas-Boas Corrêa continua encantando seus ouvintes/ leitores. Nesse livro primoroso – que merece reedição neste ano do centenário de nascimento do autor –, cada caso é melhor que o outro. É uma pena quando chegamos ao fim dessas deliciosas narrações, na página 155. Como Otto, agradecemos ao autor pelo tesouro que nos legou. Villas-Boas Corrêa hoje habita os campos elísios de Deus, muito além da paradisíaca Serra da Onça e da onírica Fazenda do Retiro.

Por Danilo Gomes, membro da Academia Mineira de Letras.