Março, 2023 - Edição 289

Entrevista com Sonia Mattos

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura



Arnaldo Niskier: Hoje, recebemos a visita da professora, filósofa Sonia Mattos, uma especialista no Vale do Café. Ela vai nos contar muita coisa sobre isso.

Sonia Mattos: Trabalho na região hoje conhecida como Vale do Café, que é o Vale do Paraíba Fluminense, berço da cafeicultura no Brasil. Há muitas cidades na região. Vassouras se destaca muito hoje, porque está renascendo. É uma cidade tombada pelo Patrimônio Histórico, desde os anos 1950, mas sofreu muito. Houve uma decadência muito grande dos prédios. O patrimônio histórico, embora tombado, padeceu muito e, recentemente, 4 ou 5 anos atrás, começou um processo de recuperação do patrimônio histórico.

Arnaldo Niskier: Você escreveu sobre isso.

Sonia Mattos: Escrevi e estou para publicar um livro sobre isso. Ele se concentra numa história particular, que é a história da Fazenda Vista Alegre, que é da minha família desde os anos 1980 e fica em Valença. Minha mãe, também escritora, grande escritora, Clair de Mattos Santos, também pesquisou a história de Vista Alegre, mas fiz uma escavação arqueológica da história. Recebi documentos primorosos, originais. Dentre esses documentos, tem esse livro, que é um livro de ouro, do fundador da Fazenda Vista Alegre, que era o Visconde de Pimentel e foi uma figura que desapareceu da história. Ele morreu longe de lá, muito pobre e muito endividado e a fazenda acabou indo a hasta pública. Quando virou o século, outros proprietários adquiriram a Fazenda Vista Alegre junto com outras duas, uma delas a Chacrinha, nossa querida amiga Hecilda Fadel, e a outra Fazenda Campo Alegre, que tinha sido de um barão, Barão de Vista Alegre, mas nunca a Vista Alegre tinha sido desse barão. A história embrulhou tudo. Passou para o século XX, com a família Oliveira Castro, como tendo sido tudo uma propriedade só. O Visconde de Pimentel sumiu na poeira da história, até que esse documento foi achado, em 1992.

Arnaldo Niskier: É original.

Sonia Mattos: Isso, é um documento original. Ele está em condições bem ruinzinhas, é um livro de 1860, e aqui temos elementos manuscritos, temos cartas, assinaturas de personagens que visitaram a fazenda e temos muitas matérias de jornal que foi um clipping que o próprio Pimentel fez. Dentre essas matérias, tem várias que noticiam a fundação da primeira escola de ingênuos no Brasil. Os negros já tinham a Lei do Ventre Livre, mas as crianças pretas não eram educadas, eram libertas, mas não tinham educação e o Visconde de Pimentel fundou, na Fazenda Vista Alegre, a primeira escola para alfabetização dessas crianças.

Arnaldo Niskier: Essa escola existe ainda hoje?

Sonia Mattos: Não, durou pouco, porque o dinheiro dele acabou, ele libertou, alforriou muitos escravizados e o café quebrou na região do Vale do Paraíba. No final dos anos 1980, era já uma região de muita decadência econômica, porque o manejo da agricultura era muito ruim, os cafezais eram muito antigos e com a abolição, então, pegou o pessoal todo muito endividado e o Pimentel não foi diferente. Todas essas informações, esses documentos foram parar numa fazenda vizinha, que era da irmã do Visconde de Pimentel, a Maria Francisca Esteves, e ali ficaram durante 100 anos, porque a fazenda continua na mão da mesma família, até que a última viúva doou para uma congregação de padres, a Fazenda Santo Antônio do Paiol. Esse documento estava junto com um acervo documental fantástico no porão dessa fazenda e um casal amigo, Rogério e Maria Alice Viana, arrendaram essa fazenda por 10 anos e descobriram essa preciosidade. O acervo de livros, cartas, livros de tombo de escravos, cartas de alforria...

Arnaldo Niskier: Você falava da família Pimentel na região do Vale do Café. Queria que você complementasse seu pensamento em relação a essa fazenda.

Sonia Mattos: O Visconde de Pimentel era um iluminista numa região e num tempo em que os homens não queriam saber de cultura e menos ainda de liberdade para os negros. Ele tinha uma visão de futuro para o Brasil que não comportava a escravidão. Então, ele alforriou quase todos os escravizados dele, tinha uma banda de pretos livres que tocavam peças eruditas e todos usavam sapatos, que era uma coisa que negros não podiam usar. Então, ele teve essa ideia, que foi o grande sonho da vida dele, de criar a escola de alfabetização dessas crianças, que já eram beneficiadas pela Lei do Ventre Livre, mas não tinham nenhuma oportunidade de educação. Ele foi um personagem importantíssimo na história, não só no Vale do Paraíba, mas do Brasil, isso foi muito comentado. Há matérias de jornal, nesse livro, que comentam essa realização como de alcance nacional. No entanto, ele foi totalmente esquecido, talvez até por ter sido um homem a frente de seu tempo, uma pessoa com visão de humanidades, num período e numa região em que a vida era muito dura e os senhores dependiam do trabalho dos escravos e esses tinham que ser submissos, porque a subversão da ordem era intolerável.

Arnaldo Niskier: Ele tinha ideia libertária?

Sonia Mattos: Ele não era um abolicionista da política, mas era um abolicionista de fato e realizou coisas impressionantes, muito importantes. Quando descobri essa história e comecei a pesquisar mais sobre a vida dele e de personagens associados a ele foi, me deu a ideia de criar o Instituto Preservale. Contei com a ajuda maravilhosa de pessoas muito queridas nossas e foi uma iniciativa que teve adesão dos proprietários, já nos anos 1990, uma outra visão de um novo rural, era uma visão inovadora do rural, no caso fluminense, que inspirou muitas outras associações Brasil afora, uma instituição de preservação do patrimônio rural. Com isso, veio a marca do turismo, um turismo de preservação.

Arnaldo Niskier: Isso tudo está no seu livro?

Sonia Mattos: Muito disso está no meu livro. Eu foquei na história da Vista Alegre, porque era um fragmento da história do Brasil. É um microcosmo de uma história que aconteceu em todo o Vale do Paraíba (O imperador falou: “O Brasil é o Vale”). E a história do Vale do Paraíba muita gente pensa que ficou no século XIX. Não ficou. Atravessou o século XX e chega até hoje no século XXI. Esse livro conta essa trans-história. Fala dos personagens da fazenda, que ocuparam, os principais, que foram Pimentel, depois a família Oliveira Castro. Com a família Oliveira Castro, vieram os dinamarqueses imigrantes, que criaram a indústria do queijo no Brasil, os primeiros queijos de tecnologia fina foram feitos em Valença, lá na fazenda Vista Alegre, inclusive o queijo prato... Na nossa região, estamos escavando o passado para construir nosso futuro e está dando certo, está dando muito certo. Ronaldo Cezar Coelho, fundador do Preservale, foi presidente do Preservale, excelente presidente, empresário de sucesso e é um grande benemérito de Vassouras. Criou, na fazenda dele, o Instituto São Fernando, que promoveu uma série de iniciativas e, agora, criou o Instituto Cultural Vassouras e vai dar de presente para nossa região um museu, vai ser um dos melhores museus da América Latina. Conseguiu comprar da Santa Casa de Misericórdia o antigo Asilo Barão do Amparo, uma construção maravilhosa, está fazendo uma obra de ponta, de primeiríssimo mundo.

Arnaldo Niskier: Seu livro está pronto. O que falta para sair?

Sonia Mattos: Patrocínio. Nossas conversas no setor cultural sempre passam pela falta de recursos. Mas é um livro que atravessa dois séculos. Essa é a imagem da Fazenda Vista Alegre. As eras de uma casa. Como falei, houve vários personagens nessa história. Foi o dinamarquês que introduziu os queijos finos no Brasil, e aqui são meus pais, na época recém-casados no Quitandinha, que compraram a Vista Alegre em 1980. De lá para cá, de 1850 até 2021, a fazenda continua viva, continua produzindo história. Esse é um fenômeno que, inclusive, o Preservale ajudou a criar e consolidar, que é o fato que essas casas são patrimônio histórico, mas de uma história que corre, que é viva.

Arnaldo Niskier: Você promove cursos lá?

Sonia Mattos: Todas as fazendas praticam hospedagem, de uma forma ou de outra, fazem eventos, casamentos, seminários, filmagens, é uma região que se presta muito à locação de novelas, filmes, minisséries. Citaria, além da Fazenda São Fernando, que é um monumento, a Fazenda São Luiz da Boa Sorte, de um casal amigo também, que é o Nestor Rocha e a Liliana. Fizeram ali uma belíssima experiência rural de patrimônio, hospitalidade, gastronomia.

Arnaldo Niskier: O que eles produzem ali?

Sonia Mattos: Produzem cultura, tem gado, tem uma pequena produção de café, tem um pequeno museu do café. Produzem, basicamente, cultura e entretenimento. Tem uma fazenda também belíssima, em Conservatória, que é Fazenda Florença, do Paulo Robertos dos Santos, que é uma fazenda espetacular que tem hoje uma produção de café especial premiadíssima, e isso é novidade no Vale, o café está renascendo.

Arnaldo Niskier: O clima ainda é o mesmo.

Sonia Mattos: Sim, mas é um café de qualidade, não é aquele café commodity, é um café de pequena escala, um café produzido com critério agroecológico, é um café que já vem sendo premiado no Brasil, tem uma saída fabulosa. Muitas pessoas hoje estão se voltando para o café como uma das formas de geração de renda, além do turismo, porque o turista foi quem pediu. O café voltou, porque aquela região se tornou o Vale do Café e no Vale do Café não tinha café, não tinha café nem para ver nem para beber.

Arnaldo Niskier: E a mão de obra para sustentar isso existe?

Sonia Mattos: É um grande desafio, porque a mão de obra rural, no Estado do Rio, desapareceu, com a sucessão das crises econômicas, migrou para as periferias, muitos dos saberes antigos se perderam. Então, é um trabalho também de recuperar esse conhecimento, essa formação da população rural.

Arnaldo Niskier: E a educação não ajuda nisso tudo?

Sonia Mattos: O senhor teve uma iniciativa brilhante, nos anos 1980 (se não me engano), juntamente com o pai do atual prefeito de Valença, que é o Fernandinho Graça, com o pai dele, o Fernando Graça, que foi a criação do polo agrícola. É uma área de formação muito importante, uma escola muito importante para a formação, no ensino médio, da população rural nas técnicas agroecológicas. É uma iniciativa que podia se multiplicar, porque hoje a demanda é muito grande. Precisamos que essa iniciativa seja retomada, porque existe a demanda, já é um trabalho mais qualificado, porque tem toda essa informação sobre a agricultura orgânica, métodos não predatórios, o reflorestamento que vem junto com o café.

Arnaldo Niskier: E tem um mercado.

Sonia Mattos: É um mercado importante de aquisição de mão de obra, mas precisa de qualificação. É um esforço que precisa ser feito dos governos estaduais, municipais e mesmo do governo federal.

Arnaldo Niskier: E o Instituto Preservale.

Sonia Mattos: O Instituto é um apoiador, somos sempre apoiadores dessas iniciativas, mas não temos o capital financeiro nem a gestão pública. O Preservale é uma instituição particular, privada, de interesse público, mas não tem o poder da caneta. Influenciamos, é diferente.

Arnaldo Niskier: Quando sai o seu livro?

Sonia Mattos: Espero ainda esse ano, porque já está em fase final de diagramação, tem um projeto gráfico muito bonito.

Arnaldo Niskier: Qual a editora?

Sonia Mattos: Ainda não tenho editora, estou aberta à convite. O mais trabalhoso foi fazer o livro, porque é um livro de muita pesquisa, tem uma quantidade imensa de notas, notas de imprensa, não é um livro de tese de mestrado. É um livro quase jornalístico, mais jornalístico do que acadêmico, mas tem uma pegada histórica muito bem fundamentada e, com isso, dá muito trabalho. E para diagramar isso, fazer um livro bonito, gostoso de ler, não é um livro para ficar numa mesa, é um livro para as pessoas lerem, porque a história vai correndo, é uma história saborosa. Está pronto, tem um design maravilhoso, um projeto gráfico espetacular.

Arnaldo Niskier: Quem fez?

Sonia Mattos: Valéria Naslausky, designer conceituada, de família de Conservatória. Ela tem uma carreira nacional, diria internacional, mas a família é de Conservatória. Na época da pandemia, ela voltou para morar lá. Então, nos conhecemos, ela ficou encantada, porque também conhece muita história de fazenda, ficou encantada com o projeto e começamos a trabalhar nisso, o livro está praticamente pronto, estou agora aceitando convites...

Arnaldo Niskier: E ficamos felizes em apresentar as ideias de Sonia Mattos, no nosso programa.

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura