Março, 2023 - Edição 289

Encontro marcado com Lygia Marina

Em 1981, o Instituto Lusíadas, do meu amigo e colega professor Paulo Peroba, levou a Fortaleza quatro grandes cronistas brasileiros, para um seminário de literatura que ficaria na história. Ana Maria e eu os recebemos no aeroporto: Fernando Sabino, Rubem Braga, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos. Todos passageiros do mesmo avião! Temeridade que me fez pensar na tragédia literária que seria aquele voo não chegar ao fim... Como em 1979, quando o conhecemos, Fernando chegou com Lygia Marina, cuja beleza chamava a atenção onde quer que estivesse.

Professora de língua portuguesa, já publicara, pela Editora Record, o primeiro volume da série paradidática Conheça o Escritor Brasileiro, não por coincidência sobre Fernando Sabino; depois viriam os dedicados a Drummond, Machado de Assis, Rubem Braga, Vinicius de Moraes e Jorge Amado. Agora, Lygia Marina lança Música na Alma (Rio de Janeiro: Vermelho Marinho, 2022), testemunho afetuoso oferecido aos netos, para que futuramente, diz, saibam mais da avó que lhes coube ter. Vai muito além: boa contadora de histórias, lembra personagens e acontecimentos do Rio que viu nascer uma admirável geração de homens e mulheres iluminados pelo talento, pelo bom humor e por uma contagiante alegria de viver. Entre esses cariocas, ela mesma, Lygia Marina, que caminhava por Ipanema sem ver seus vigias catando a poesia que entornava no chão, como nos versos de Chico Buarque... Escreve o cronista Joaquim Ferreira dos Santos:
Lygia foi aluna do Colégio Sion, um núcleo conservador da educação para moças. Com o tempo, tornou-se uma mulher de vanguarda, da geração que continuou os passos libertários de Danuza Leão e Leila Diniz. Frequentou as noites divertidas dos anos dourados, curtiu a vida, cuidou da família e trabalhou duro dirigindo centros culturais do Rio. Sempre com classe e um dos rostos mais marcantes da divina galeria de musas cariocas.

Em 1968, depois das aulas no Colégio Brasileiro de Almeida, a jovem Lygia vai com uma colega ao Bar Veloso, onde logo vê Tom Jobim, que ali compusera, com Vinicius de Moraes, a famosa “Garota de Ipanema”. O maestro levanta-se, aproxima-se da mesa em que se encontra a bela e se surpreende ao sabê-la professora da escola da família. “Sua filha Beth é minha aluna”, ouve, ao que comenta, divertido: “Não estou acreditando, é a primeira paquera da minha vida que vira uma reunião de pais e mestres...”

Tempos depois, Tom pede a uma filha de Fernando Sabino o telefone do pai, com quem quer falar. É atendido por Lygia (não sabia que ligara para a casa dela), já companheira do cronista. Na manhã seguinte, com uma conversa boba de principiante que não era, o compositor telefona para o escritório de Fernando: quer confirmar o número de Lygia, pode ser que os dois estejam juntos quando quiser contactar o escritor... Sabino, claro, não morde a isca e passa-lhe uma sequência de trotes, brincadeira em que se tornara mestre: “Anota aí, Tom...”, e dava-lhe um número errado, para o qual telefonava imediatamente: “Olha, o Tom Jobim vai ligar perguntando por Lygia Marina. Por favor, diga-lhe que o telefone dela é este...”, e inventava um número, para o qual discava: “Olha, o Tom Jobim vai ligar perguntando por Lygia Marina. Por favor, diga-lhe que o telefone dela é este...”, e outro número errado.

Aessa história meio cômica devemos uma das mais belas canções da música brasileira, “Lígia”: “Eu nunca sonhei com você / nunca fui ao cinema / não gosto de samba, não vou a Ipanema.” Os olhos da musa passam de verdes a morenos (para despistar...?) e a brincadeira do passador de trotes é discretamente citada: “E quando eu lhe telefonei, desliguei, foi engano”... A inspiradora dos versos só reclama da troca de letras: “Se Tom a fez pra mim, deveria ser Lygia, com y...”
Com ela e Fernando Sabino, Ana Maria e eu vivemos encontros memoráveis, em Fortaleza e no Rio de Janeiro, quando jantares e drinques eram pretexto para conversarmos noite adentro, sobre viagens, livros, jazz e tudo mais que nos unia. Em 1988, surpreendemo-nos com a notícia de que o casamento deles chegara ao fim, de maneira não exatamente amigável. Para que se tenha ideia, Fernando retirou da sua Obra Reunida, publicada em 1996 pela Editora Nova Aguilar, todas as menções ao nome de Lygia, como na verdadeira declaração de amor com que a homenageia no romance O Grande Mentecapto: “À mui nobre, distinta e formosa senhora dos meus afetos, Dona Lygia Marina de Sá Leitão Pires de Moraes, de cujos encantos meu coração é cativo e a cujo estímulo deve esta obra o ter chegado a seu termo, dedico, ofereço e consagro.”

Separados os dois, ficamos em silêncio, avessos que somos a julgar e condenar amigos, sobretudo em questões que dizem respeito, somente, a marido e mulher. Música na Alma desaponta quem esperou, de Lygia, “vingar-se” de Fernando, devolver-lhe o ressentimento e a mágoa que o levaram a querer apagar uma relação de 19 anos. Acusa-o de infeliz, vaidoso, obsessivo, egocêntrico e egoísta, mas reconhece, com dignidade, justiça e elegância, o muito que lhe deve, os momentos de alegria e de felicidade que viveram:
Foi um casamento bom? Claro que foi. Até deixar de ser. Fernando foi muitíssimo importante na formação do meu filho. Ele amava Luís, e era recíproco. Sei e não nego que o amei muito, mas não segurei a barra daquele processo depressivo e cheio de fantasmas.

Nada do que houve entre nós, porém, diminuiu a minha admiração pela obra de Fernando Sabino. Acho seu texto até hoje um primor.
Fernando foi um ótimo companheiro, ele que me iniciou no que hoje mais gosto de fazer: viajar. Metódico, sabia como ninguém fazer um roteiro.
Foram anos deliciosos... que acabaram.

A história do polêmico livro Zélia, uma Paixão é contada em oito cenas – do encontro à porta de um restaurante em São Paulo, quando Lygia cumprimenta a então ministra da economia de Collor, e diz que gostaria de apresentar-lhe o marido, até a entrevista coletiva em que Sabino se vê sob forte bombardeio da imprensa: A novela não acaba aqui, mas prefiro encerrar o capítulo com meu depoimento: como já disse, irei defendê-lo até a morte, não por me sentir culpada, porque sou responsável pelos dois terem se aproximado, mas porque, enquanto esteve vivo, Fernando jamais se defendeu. Aceitou calado todas as agressões e nunca mais deu entrevistas, nunca mais foi visto em lugar algum depois daquele dia em que todos se esforçaram por massacrá-lo.
Ex-diretora da Casa França-Brasil e da Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro, Lygia Marina, em Música na Alma, diz sobre si mesma para falar dos amigos que tem, da cidade que ama, do tempo em que deixou sua marca de beleza e de inteligência: “Minha vida só prova isso. Entre erros e acertos, fui vivendo à minha maneira, com minha régua e meu compasso, e fui, antes de tudo, feliz.” Como escreveu Fernando Sabino em O Encontro Marcado, pode afirmar que, de tudo, ficaram três coisas: A certeza de que estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompida antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.

Por Edmilson Caminha, da Academia de Letras do Brasil