Janeiro, 2023 - Edição 287

Reflexões sobre a arte da escrita

Bibliófilo, exímio poeta, professor que é uma referência para diferentes gerações de seus muitos alunos, crítico literário de enorme importância para a literatura brasileira, acadêmico de atividade constante, Antonio Carlos Secchin presenteou seus leitores, neste ano de 2022, com uma de suas facetas (ao menos até agora) de menor evidência em sua profícua produção: a de prosador. Em seu livro mais recente, Ana à Esquerda, Secchin traz dezesseis contos, em que explora, através de diferentes narrativas, seres humanos diante de situações inusitadas, de estranhamento e, em alguns casos, de absurdo diante de suas vidas.

Cada conto possui características tão ricas que me seria impossível falar de todas elas no restrito espaço que disponho aqui, mas ouso apontar algumas delas. Um elemento que é muito presente nos textos de Ana à Esquerda é a intertextualidade que, no entanto, não aparece como simples exercício formal ou maneirista, mas que serve à tecitura de uma profunda rede de significados para o enriquecimento de seus leitores. Caso exemplar é o do conto que dá título ao livro, no qual o autor constrói um texto que dialoga, mais evidentemente, com a obra de Machado de Assis (1839-1908), com a de Lewis Carrol (1832-1898) e com a difícil arte do palíndromo.

Em relação a Machado, é evidente a referência ao seu conto O espelho – que, por sua vez, é também construído pleno de relações intertextuais e de referências explícitas a autores como Shakespeare (1564-1616), Henry Longfellow (1807-1882), dentre outros – que, um homem, realizando uma narrativa dentro da própria narrativa do conto, narra aos seus ouvintes como descobriu que cada ser humano possui não uma, mas duas almas, ao ter tido a experiência de se confrontar consigo mesmo diante de um espelho em um longo período de solidão. No conto de Secchin, o narrador também enfrenta a solidão e faz emergir do espelho vários elementos que a sua imaginação inventa, inclusive um boi e um coelho.

De Lewis Carrol, as referências mais evidentes são a presença do coelho e o nome de uma das personagens, Ana Ecila, que, lido ao contrário (Alice Ana), nos remete à personagem principal de Carrol em dois de seus livros, Alice no País das Maravilhas (1865) e Alice Através do Espelho (1872). Mas as referências não param por aí. Assim como a personagem de Carrol, o personagem narrador de Secchin também se confronta com a realidade complexa proporcionada pelo espelho. Mas, ao contrário da Alice de Carrol, que atravessa o espelho para encontrar do outro lado um mundo totalmente novo, o personagem do conto de Secchin teme ser aprisionado pela “realidade” do espelho, que traz para o mundo do personagem as mais diversas materializações do que é pensado por ele. Em um determinado momento da trama, o personagem narrador chega ao ponto de ter de se disfarçar para enganar o espelho. Nessa tentativa de não deixar que o espelho refletisse a sua face sem disfarces, o narrador vê-se envolto com a possibilidade de não mais reconhecer a si próprio em meio a tantas dissimulações.

Sobre o palíndromo, o texto apresenta vários deles ao longo da narrativa, que deixarei para que os leitores os descubram. Chamo atenção apenas para o fato de que o texto termina com um dificílimo palíndromo de nove palavras, talvez um dos maiores da língua portuguesa. Se levarmos em consideração que nada é casual no texto de Secchin (note-se, por exemplo, que, em algumas tradições espirituais do mundo ocidental, o número nove representa o infinito, o eterno retorno, já que, em uma operação de multiplicação em que ele esteja envolvido, a sua redução, através da soma dos números que formam o resultado, sempre o traz de volta), a escolha do número nove parece nos lembrar da permanência, da complexidade e (por que não o dizer?) do eterno confronto do ser humano com a sua delicada condição. Essa última constatação me faz refletir sobre uma chave de leitura ainda mais profunda do trabalho de Secchin, aquela que nos leva a perceber que a presença dos palíndromos em seu texto não é um mero artifício para um exercício intelectual formal, mas, tais como utilizados em seu texto, os palíndromos se transformam em metáforas do complexo jogo de projeções, inversões e de performances das nossas próprias identidades nos diversos mundos sociais em que trafegamos.

Do primeiro grupo de textos do livro, seria importante mencionar, também, os contos Confissão de um homem e J, em que, em uma clara referência à obra Seis personagens em busca de um autor de Luigi Pirandello (1867-1936), personagens cansados de representarem papéis definidos, desafiam seus autores. No primeiro conto, de verve mais cômica, um personagem desfila suas agruras como personagem pouco representativo de um romance, enquanto reivindica para si um papel de maior relevo. No segundo conto, a personagem “J” desenvolve uma complexa relação de desconfiança com seu autor ao perceber que este sempre a coloca em situações complexas, envolvendo, inclusive, o risco de sua vida. Em dado momento, sem acreditar nas mirabolantes explicações do autor, a personagem resolve se vingar de forma inusitada.

Naquilo que podemos chamar de segunda parte do livro, Secchin nos traz um grupo de cinco textos sob o nome de “Movimento”, no qual, em termos resumidos, um narrador escritor (o melhor seria dizer “narradores escritores”) reflete sobre a arte da escrita, ao mesmo tempo em que dá vida (ou seja, coloca em movimento) os personagens que engendra. Em um jogo em que vida e a ficção se confundem, o narrador deseja ser um personagem enquanto vê seus personagens vivos em seu cotidiano. No que parece ser uma profunda crise criativa, o narrador escritor, que não consegue terminar o texto a que se propôs, reflete sobre o sentido da escrita, enquanto transforma em prosa as suas próprias experiências. A referência ao famoso personagem Telêmaco, dentre outras pistas textuais, mostra o escritor como um verdadeiro Ulisses – de Homero (oitavo século a. C.), mas também de James Joyce (1882-1941), em uma verdadeira jornada existencial em que ele, de modo angustiante, tenta terminar as diversas histórias que começa. Não conseguindo terminá-las, depara-se com várias perguntas, mas com poucas possibilidades de resposta. Em um dado momento (p. 81) o narrador escritor se pergunta: “Como prosseguir com a história? De que serviria se eu prosseguisse?”.

Em um jogo de espelhamentos que já havia sido inaugurado no primeiro conto do livro, nos demais textos de “Movimento”, um escritor narrador leva os leitores a confundirem vida e ficção ao narrar ficção como realidade, para descortinar, mais adiante, que o que descreveu se tratava, na verdade, da invenção de um novo enredo ou personagem. O narrador escritor do texto de Secchin vê-se confrontado pelo fato de que aquilo que escreve não tem diferença daquilo que vive ou daquilo que ele é. Ao fim, ele parece ter se aproximado da escrita para fugir dela, para conquistar forças a fim de enfrentar a vida com alguma esperança de liberdade. Talvez, por isso é que o escritor narrador dirá, em uma quase tentativa de conclusão e justificativa para o seu enredo, ao se libertar do ato de escrever: “Eu estava livre. Viver, para mim era um modo imperfeito de não escrever” (p.122).

Do início ao fim, o livro de Antonio Carlos Secchin é uma verdadeira conversa com alguns dos expoentes da literatura ocidental e uma grande meditação sobre o sentido da escrita (e, quiçá, também, sobre o sentido da existência). Termino esta leitura interpretando o seu texto, sobretudo, como um convite para que seus leitores entrem em uma desafiadora sala de diferentes espelhos na qual imagens e realidade, ficção e vida se confundem. A literatura nos ilude muitas vezes, mas ela também pode nos propiciar o confronto libertador. Alguns dizem que ela pode até curar. Secchin sabe de tudo isso e o seu livro nos dá provas de que ele (ou seja, o seu próprio texto) sabe mais sobre Secchin do que o próprio autor poderia suspeitar.

Por William Soares dos Santos, Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e escritor.