Janeiro, 2023 - Edição 287

Linguagem neutra

No meu último livro Pequenos Estudos de Língua(gem) (2.ed. São Paulo: Opção, 2021), tentei mostrar, de maneira sutil, que os que advogam uma linguagem neutra, como “querides alunes”, em que o feminino e o masculino se fundem numa desinência única, partem de um equívoco – confusão entre gênero e sexo – e do desconhecimento da própria língua – a formação do masculino em português a que acresceu o neutro latino. Na verdade, o equívoco talvez se tenha originado do colonialismo cultural a que se submetem os falantes do acroleto (dialeto da classe social mais elevada) que utilizam como sinônimos gênero e sexo, à semelhança do inglês gender. Gênero é distinção gramatical. Sexo é distinção semântica.

Há palavras masculinas que designam tanto pessoas do sexo masculino quanto pessoas do sexo feminino, variando apenas o artigo, como artista, selvagem, atleta, pianista; e há palavras femininas que designam pessoas tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino, como criança, vítima, testemunha. E há palavras masculinas que designam tanto homens quanto mulheres, como cônjuge, indivíduo, apóstolo. E há palavras masculinas que designam pessoas do sexo feminino, como mulherão, por exemplo, que designa uma mulher exuberante. As gramáticas deveriam estudar o gênero em português não como masculino e feminino, mas como gênero não marcado e gênero marcado. Apenas o gênero feminino é marcado em português. O masculino não tem marca. Sei que Deus é masculino porque não tem a marca do feminino. Deusa é feminino porque tem a marca {-a} do feminino. Se numa sala há cem mulheres e um único homem, a concordância se faz no masculino, que não tem a marca gramatical do gênero. Não à toa pronomes como isso, aquilo, tudo, ninguém, quem, etc. exigem concordância no masculino porque não têm gênero.

Acredito que essa ideia da linguagem neutra seja uma inovação dos que constituem a comunidade LGBTQA+ que querem impor um jeito de falar diferente, na presunção ilegítima de que nossa língua os estigmatiza com a predominância do masculino na concordância nominal. Quando se diz que “todo homem é mortal”, a palavra homem aí não designa ninguém do sexo masculino e ainda menos um indivíduo. Homem está aí para designar o ser humano, incluindo a mulher, por óbvio. Quando disse que o sertanejo é antes de tudo um forte, Euclides da Cunha se referia também à mulher sertaneja. Os que falam em “todos os brasileiros” e “todas as brasileiras” ignoram que “todos” inclui já, em sua significação, tanto o masculino quanto o feminino. O masculino em português é termo genérico que inclui o feminino em sua significação.

Em outras palavras, tentar subverter a língua portuguesa para impor um ponto de vista é um esforço talvez persistente por algum tempo, mas cedo se revelará inútil por lhe faltar vitalidade, historicidade, padronização e autonomia, parâmetros indispensáveis à conceituação e à fundamentação de uma língua.

Por José Augusto Carvalho, doutor em Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo.