Dezembro, 2022 - Edição 286

Ossos

No laboratório de nossa escola, havia um esqueleto. Ele ficava bem na frente, pendurado por uma haste de metal, com seu sorriso irônico, seu ar pensativo de quem já penetrou o segredo do além. Enquanto o professor de Ciências dava aula sobre a clorofila das plantas, ele balançava levemente como se fosse, a qualquer momento, acenar com seus dedos descarnados. Eu me esforçava para pensar que era semelhante a ele e que não era, ao mesmo tempo. Os ossos são o esqueleto do corpo. São símbolos de firmeza e de força. São o suporte do visível. A estrutura. Representam também a necessidade de ascese diante da brevidade da vida e o acesso à imortalidade.

O crânio é um objeto cênico. A peça Hamlet, de Shakespeare, narra a história trágica do rei da Dinamarca encarregado pelo fantasma de seu pai para vingar seu assassinato. Hamlet o faz, mas somente após o resto da família real ter sido liquidada e ele ter sido ferido com um florete envenenado por Laertes. Há uma cena retratada pelo pintor Eugène Delacroix em que Horácio, amigo de Hamlet, oferece a ele um crânio, diante do qual Hamlet faz a célebre citação: “Ser ou não ser, eis a questão.”

Jerônimo, incansável tradutor da Bíblia, escrevia em pergaminhos feitos com folhas de bananeiras, em sua caverna no deserto, sempre tendo ao seu alcance um crânio, que o fazia lembrar a todo instante a transitoriedade da vida e a corrupção da carne.

Lord Byron, o poeta romântico inglês, usava um crânio como taça de champanhe em cultos satânicos. Durante a Idade Média, cresceu a veneração às relíquias. Eram consideradas relíquias reais as partes do corpo do mártir ou do santo, como cabelos, sangue, ossos e cinzas, às quais eram prestadas honras religiosas. Os ossos guardavam a virtude dos santos.

Lembro-me do choque ao ler ainda adolescente os versos de Fernando Pessoa em Mensagem: “Sem a loucura, que é o homem/ Mais que a besta sadia,/ Cadáver adiado que procria?”. Como isso me marcou fundo: somos caveiras que geram novas caveiras? Essa imagem virou uma obsessão no meu pensamento adolescente.

A polêmica poesia de Augusto dos Anjos, o poeta paraibano pré-modernista, que admiro pelo realismo, está repleta de menções a ossos e caveiras, como nestes versos: “Eu sou aquele que ficou sozinho/ Cantando sobre os ossos do caminho/ A poesia de tudo quanto é morto.”; “E haja só amizade verdadeira/ Duma caveira para outra caveira,/ Do meu sepulcro para o teu sepulcro?”; “Sol brasileiro! Queima-me os destroços!/ Quero assistir, aqui, sem pai que me ame, / De pé, à luz da consciência infame,/ à carbonização dos próprios ossos!” E há até mesmo um soneto dedicado a um coveiro que termina assim: “Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,/ Porque, infinita como os próprios números,/ a tua conta não acaba mais.”

O épico livro de poemas Corta a Noite um Gemido, de Reynaldo Valinho Alvarez, versos trágicos e atuais sobre genocídios, atentados, batalhas urbanas, crimes, chacinas, guerras, massacres, crimes e morticínios. Uma denúncia contundente e dolorosa contra a crueldade humana, contra os ódios e preconceitos. O retrocesso em pleno século XXI. São poemas que nos fazem chorar e que nos libertam. São curativos e sedativos da dor. Expurgos. Entre espanto e horror contemplamos ossos em valas e em versos como estes: “Durmam os déspotas felizes,/ que estão cortados os pescoços/ desses rebeldes aprendizes/ que ao sol aquecem os seus ossos.”; “A tristeza grudou-se em cada pedra ou osso/ que os cães vão farejar, cavando nos escombros.”; “Feridas, contusões e membros amputados/ atestam a eficácia e o valor dessas armas,/ testadas sobre o crânio humilde dos coitados/ que arrastam no planeta os seus sofridos carmas.”

Ezequiel, o profeta, teve a visão de um vale de ossos secos. A mão do Senhor o levou em espírito e o pôs em meio de um vale que estava cheio de ossos secos, sequíssimos. Deus perguntou a Ezequiel: “– Poderão viver estes ossos?” E Ezequiel respondeu: “– Só tu o sabes.” Então, profetizou: “– Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor.” O Espírito de Deus penetrou nos ossos secos e eles reviveram, se juntaram, cada osso a seu osso, formando esqueletos. Os esqueletos se cobriram de nervos, carne, músculos, pele e ergueu-se todo um exército.

Ó Deus! Assopra sobre mim, sobre o monte de ossos que sou, desde o ventre da minha mãe. Estou tão seca e morta. Arranca-me da sepultura, dá-me outra visão desse vale, reverte a situação em que me encontro, muda a estrela da minha sorte. Nem tudo está perdido, eu sei, porque os caídos podem se levantar do chão, do pó. A vida pode ser infundida até em ossos secos, em ressurreição gloriosa. Restaura-me. No interior dos meus ossos, há ainda substancioso tutano e creio que tudo é possível.

Por Raquel Naveira, membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.