Novembro, 2022 - Edição 285

Entrevista com Laurentino Gomes

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura

Laurentino Gomes e a escravidão



Arnaldo Niskier: Hoje, com muito prazer, recebemos a visita do escritor e acadêmico, da Academia Paranaense de Letras, Laurentino Gomes. Ele é autor de três clássicos da literatura brasileira: 1808, 1822 e 1889. O que levou você a fazer essa trilogia famosa?

Laurentino Gomes: Foi uma série de coincidências muito favoráveis na minha vida. Sou jornalista de formação, trabalhei mais de 30 anos em redação de jornal e revista, mas sempre tive o interesse paralelo à minha vida como jornalista, que era estudar História do Brasil. Em 1997, eu trabalhava na Veja, era editor executivo e a revista tinha um projeto de fazer uma série de especiais sobre História do Brasil, que seriam distribuídos de brindes para os novos assinantes. Um deles era sobre a vinda da corte de Portugal para o Rio de Janeiro. Encarregado de coordenar uma equipe para estudar esse assunto, fiquei completamente fascinado por esse episódio e seus personagens. Esse rei, esse príncipe regente, gordo, que dizem que não tomava banho regularmente, era um glutão, comia quantidades fenomenais de franguinhos passados na manteiga. Mas tomou uma decisão corajosa, surpreendente, que foi trazer a corte para o Rio de Janeiro, fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte. A certa altura, a revista cancelou o projeto e decidi seguir sozinho. Publiquei, em 2007, na Bienal do Rio de Janeiro, o livro 1808.

Arnaldo Niskier: Você sempre publicou suas obras pela Globo Livros?

Laurentino Gomes: Não, primeiro pela Planeta, depois pela Nova Fronteira e agora estou na Globo Livros. Mas, quando lancei o 1808, aconteceu o que nunca imaginei nem no meu sonho mais delirante: o livro se tornou um best-seller, teve uma repercussão muito maior que imaginava. Até agora vendeu mais de um milhão e meio de exemplares e tomei uma decisão drástica, pedi demissão do emprego, virei escritor e o resultado foi fazer o segundo livro.

Arnaldo Niskier: Dá para viver como escritor?

Laurentino Gomes:Dá, o mercado editorial brasileiro se profissionalizou muito, hoje temos boas editoras. Claro que, se o livro tiver uma repercussão grande, como felizmente os meus tiveram, é possível levar uma vida bastante decente com os direitos autorais. No passado, isso não acontecia, mas o Brasil hoje evoluiu bastante em termos de profissionalização do mercado editorial e é possível, sim.

Arnaldo Niskier: Você não precisou se transferir para um grande centro, como Rio, São Paulo?

Laurentino Gomes:Eu já estava em São Paulo. Nasci no Paraná, mas morei em várias cidades.

Arnaldo Niskier: Você nasceu em Maringá.

Laurentino Gomes: Nasci em Maringá, mas trabalhei em Curitiba, Belém do Pará, Recife, Brasília e vim parar em São Paulo. Então, quando lancei o 1808, estava em São Paulo.

Arnaldo Niskier: Você é nômade.

Laurentino Gomes: Mas essa experiência como jornalista me permitiu conhecer muito o Brasil, a realidade brasileira. Acho que isso ajudou no momento em que decidi também me tornar escritor e escrever sobre História do Brasil.

Arnaldo Niskier: Quando pensou em trilogia, pensou de uma vez só ou isso veio acontecendo aos poucos?

Laurentino Gomes: Aos poucos. Não tinha o plano de escrever uma primeira trilogia, apenas escrever o livro 1808, mas os leitores começaram a me fazer uma pergunta óbvia. Eles perguntaram: “Você escreveu sobre os 13 anos de permanência da corte no Brasil, uma história muito interessante, mas e a consequência? Não dá para entender o processo de Independência do Brasil sem observar a corte do D. João no Rio de Janeiro.” Então, decidi escrever o 1822, que lancei em 2010, e sobrava uma terceira data óbvia que era 1889, essa ruptura, Proclamação da República. Então, essa trilogia foi acontecendo aos poucos. A segunda trilogia, Escravidão, que acabei de encerrar, foi planejada, desde o começo, em três volumes, mais de mil e quinhentas páginas, porque o assunto é complexo, uma bibliografia enorme.

Arnaldo Niskier: E por que o Brasil demorou tanto a abolir a escravidão? Foi das Américas o último país.

Laurentino Gomes: É importante levar em conta que o Brasil foi o maior território escravista das Américas. O Brasil recebeu cerca de 5 milhões de africanos escravizados, isso dá 40% do total de 12 milhões e meio que embarcaram para as Américas e todos os nossos ciclos econômicos foram construídos com mão de obra cativa. Do pau-brasil, que era mão de obra indígena, depois açúcar, ouro, diamante, algodão, tabaco, café, tudo foi construído com mão de obra escrava. De maneira que o Brasil estava refém da escravidão. As grandes lavouras são as primeiras grandes commodities da história humana, são os primeiros grandes bens de consumo de massa. O açúcar, até a chegada dos portugueses ao Brasil, era um bem muito precioso, figurava em dotes de matrimônio, em testamentos pós-morte e depois se tornou um produto muito popular, muito barato.

Arnaldo Niskier: É a época em que nomeamos viscondes, barões, nobres de todo o calibre...

Laurentino Gomes: Sim, o Brasil teve uma nobreza fugaz, ela não era hereditária, era uma nobreza que se extinguia com a morte do detentor do título. Mas o Brasil teve conde, visconde, barão, comendadores, essa nobreza que geralmente estava ligada à terra e à exploração da mão de obra cativa. A grande parte dos barões brasileiros eram produtores de café.

Arnaldo Niskier: D. Pedro II era um tipo eminentemente democrata. Era uma figura interessante e de bons princípios. Por que ele ficou 49 anos no poder e não se deu conta de que podia ter agido de outra forma?

Laurentino Gomes: No livro O Abolicionismo, o grande abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco, aliás fundador da Academia Brasileira de Letras, faz um julgamento severo a D. Pedro II. Ele cita uma frase interessante do jornalista Ferreira de Menezes, que diz assim: “O imperador passou 50 anos, quase meio século, a fingir que governava um povo livre.” É um julgamento duro. D. Pedro II é, digamos assim, a vitrine de um Brasil que, no século XIX, era uma miragem, era uma ilusão de ótica. No livro 1889, há um capítulo sobre o Brasil como uma miragem, uma ilusão de ótica. No século XIX, o Brasil se apresentava ao mundo como uma monarquia liberal, parlamentarista, tinha uma Constituição surpreendentemente liberal – Constituição de 1824 –, tinha uma arquitetura imperial no Rio de Janeiro, em Petrópolis, tinha condes, barões, viscondes, príncipes, princesas, mas a realidade nas ruas era de pobreza, analfabetismo. Estima-se que, na época da Independência, eram 99% de analfabetos, escravidão e concentração de riqueza. Então, é muito curioso observar que o imperador Pedro II é uma projeção de um Brasil que gostaria de ser, mas não era. Um homem muito culto, muito educado, amante das artes, das ciências, amigo do Graham Bell, do Victor Hugo, de inúmeros filósofos e grandes pensadores...

Arnaldo Niskier: E ele circulava pelo mundo.

Laurentino Gomes: Circulava, falava várias línguas, estudou hebraico, mas o Brasil real era o oposto de D. Pedro II. O D. Pedro II é como se fosse um farol, um profeta do Brasil que ainda hoje não aconteceu, esse Brasil que deveria ser desenvolvido, educado, culto. Então, o que me encanta em D. Pedro II é exatamente isso. Mas ele era refém da realidade brasileira. Realmente o trono brasileiro era um gigante com pés de barro, porque tinha essa arquitetura liberal, aparentemente muito desenvolvido, um Brasil surpreendentemente moderno do ponto de vista das leis e da nomenclatura, mas a realidade era de escravidão, era de pobreza e de analfabetismo. Esse era um pacto entre a aristocracia rural escravista brasileira e o trono. Um apoiava o outro e um não mexia nos interesses do outro. Esse pacto vem desde a época da Independência. O Sérgio Buarque de Holanda fala de um sentimento de medo na época da Independência que funcionou como um amálgama no processo de Independência. São dois medos. O primeiro era que o Brasil mergulhasse numa guerra civil republicana, nesse caso os chefes políticos regionais entrariam em guerra entre si, e o Brasil poderia se fragmentar em três, quatro países desse tamanho, como aconteceu com a América Espanhola. Mas havia o segundo medo que era de uma bomba social, de uma rebelião escrava, como tinha acontecido no Haiti. Durante a Revolução Francesa, os colonos franceses começaram a brigar entre si, armaram seus escravos e houve um banho de sangue na Independência do Haiti. Então, essa soma de dois medos fez com que a elite brasileira optasse por um caminho conservador. Manteve a monarquia, manteve o herdeiro da coroa de Portugal no trono e isso explica o Brasil se manter como monarquia durante 67 anos. Quando esse pacto se rompeu, com o movimento abolicionista, depois da Guerra do Paraguai que terminou em 1870, o edifício desabou, é como se houvesse uma implosão da monarquia brasileira, porque os fazendeiros se consideraram traídos e migraram para a campanha republicana. D. Pedro II realmente ficou órfão não só do seu império, mas também daquela aristocracia que o apoiava até então. D. Pedro II foi traído na Proclamação da República.

Arnaldo Niskier: E a Guerra do Paraguai, que você citou, foi de certa maneira uma vergonha para nós, não foi?

Laurentino Gomes: Foi, o Brasil quase perdeu essa guerra. No começo, se achava que ia ser um passeio, um país pequeno, o Paraguai, mas o Brasil não tinha condições de enfrentar aquele país que de fato tinha uma organização militar muito avançada. O Brasil não tinha Forças Armadas realmente organizadas, o que tínhamos era a defesa interna pela guarda nacional, foi preciso recrutar os Voluntários da Pátria, aliás o próprio D. Pedro II se apresentou como voluntário. Muitos escravos foram recrutados e mandados para a Guerra do Paraguai e, pela primeira vez, homens livres e homens cativos lutaram lado a lado pelo mesmo ideal, defendendo o mesmo país. Isso explica porque o movimento abolicionista ganhou força, depois do fim da Guerra do Paraguai, porque é uma nova noção de identidade nacional.

Arnaldo Niskier: Você conta isso tudo nos seus livros.

Laurentino Gomes: É, no 1889. Os símbolos nacionais foram valorizados, essa noção de identidade nacional se reforçou com a Guerra do Paraguai, mas realmente foi um desafio muito grande. Diria que 1870, o último ano da Guerra do Paraguai, é o apogeu, mas é o início do declínio do Império, porque realmente foi a grande vitória. O Brasil se consolidou, uma nova identidade nacional que nasce com a Guerra do Paraguai, mas em 1870 estavam plantadas as sementes de destruição do Império. A questão militar, uma divergência entre as lideranças militares e as autoridades imperiais, o movimento abolicionista, que começa de fato em 1870, a campanha republicana, o manifesto republicano é publicado em 1870 e a saúde do imperador Pedro II, que era o avalista desse modelo.

Arnaldo Niskier: Ele teve problemas de saúde?

Laurentino Gomes: Sim, o imperador Pedro II sofria de diabetes. É muito interessante observar as fotografias, ele era um homem precocemente envelhecido. E havia uma grande incógnita no ar, que era a filha princesa Isabel. Esse é um país patriarcal, conservador, havia muita dúvida sobre a viabilidade de um terceiro reinado com uma mulher no trono. Uma mulher muito católica, muito subserviente ao Papa, a maçonaria, que congregava a elite intelectual brasileira, começou a se opor à princesa Isabel. Então, a soma de tudo isso levou à queda do Império, duas décadas depois do fim da Guerra do Paraguai. Acho que a monarquia trazia embutida nela sua própria semente de destruição.

Arnaldo Niskier: E o papel da Inglaterra nessa história toda? Sempre que se lê os seus livros – porque é a melhor fonte, Laurentino Gomes –, existe a presença de forças britânicas, forças inglesas no processo. A Inglaterra nunca deu mole para o Brasil em toda sua história. Como você interpreta isso?

Laurentino Gomes: A Inglaterra emergiu como grande potência militar e marítima com a Batalha de Trafalgar, de 1805, a esquadra francesa aliada aos espanhóis foi derrotada pelo almirante Nelson e essa Inglaterra, logo em seguida, faz a Revolução Industrial, já na segunda metade do século XVIII. Então, a Inglaterra se torna não só uma potência militar e marítima, mas também uma potência industrial, passa a produzir bens e mercadorias numa escala nunca vista até então na história. Passa também por uma transformação interna muito importante, que é o nascimento do movimento abolicionista, junto com a Revolução Industrial. Então, essa potência militar, industrial passa a pressionar os outros países a acabar também com a escravidão e isso é um problema para o Brasil, porque resistiu a todos os esforços. Foi o último país das Américas a acabar com o tráfico, com a Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, e com a própria escravidão, com a Lei Áurea, de 1888. A Inglaterra foi avalista do processo de Independência do Brasil, a Inglaterra forçou Portugal a reconhecer o Brasil independente. Isso levou as outras monarquias europeias também a reconhecer o Brasil, mas havia uma condição: a primeira que o Brasil perpetuasse um tratado comercial leonino que impunha tarifas preferenciais para os produtos ingleses no Brasil. Isso dificultou, por exemplo, a industrialização brasileira, no século XIX. A segunda condição era o fim do tráfico negreiro, e acontece uma coisa curiosíssima. Em 1831, o parlamento brasileiro aprovou uma lei que acabava com o tráfico de escravos, só que era uma lei para os ingleses verem, daí vem a expressão “para inglês ver”, porque nunca entraram tantos africanos ilegais e clandestinos em tão pouco tempo quanto nas duas décadas seguintes. Então, houve ali um embate diplomático e militar e o Brasil só concordou em acabar com o tráfico em 1850, sob a mira dos canhões da armada britânica. Um cruzador britânico invadiu águas territoriais brasileiras, na Baía de Paranaguá, no Paraná, trocou tiros com uma fortaleza da Ilha do Mel, acusada de proteger o tráfico negreiro. Foi uma humilhação para o imperador Pedro II a invasão de águas territoriais por uma armada e o Brasil fez a Lei Eusébio de Queiroz. Mas os ingleses continuaram fazendo investimentos importantes no Brasil em ferrovias, em mineração. Há uma dose de hipocrisia nessa história, porque, até às vésperas da Lei Áurea, as mineradoras inglesas, em Minas Gerais, usavam mão de obra escrava, alugavam, compravam escravos. A Inglaterra financiou mercadorias, navios que continuaram a ser usados no tráfico de escravos, foi uma potência muito forte. Tem uma famosa Questão Christie, que um diplomata britânico aqui, no Rio de Janeiro, impôs condições que eram consideradas indignas e o próprio imperador foi às ruas protestar contra essas exigências. Então, diria assim, era uma relação de amor e ódio entre o Brasil e a Inglaterra. Pressões a favor de coisas importantes, como o fim da escravidão, mas também impondo limitações na economia brasileira que eram inaceitáveis.

Arnaldo Niskier: Isso você trata com muita propriedade em um dos seus livros, 1889. Com sua experiência, você visitou 12 países para fazer sua obra. É um fenômeno, é uma coisa extraordinária. Qual é a impressão que você ficou da presença do Valongo do Rio de Janeiro nesse processo?

Laurentino Gomes: O Valongo talvez seja o local mais simbólico sobre a escravidão, porque ali foi o maior entreposto de comércio de gente, durante o século XIX. Na época da Independência, eram comprados e vendidos, geralmente em leilões em praça pública, cerca de 30 mil homens e mulheres escravizados por ano. Eram chamados negros boçais ou pretos novos, os recém-chegados.

Arnaldo Niskier: Tinha um Instituto de pretos novos.

Laurentino Gomes: Tem agora. Essa história é muito interessante, porque muitos chegavam doentes, desnutridos e morriam depois de chegar ao Brasil, e os cadáveres eram jogados em valas comuns e cobertos com cal. Na década de 1990, agora recentemente, um casal foi reformar uma casa na Rua do Camerino, na Gamboa, e descobriu uma série de ossos no solo e hoje lá funciona o Instituto Pretos Novos, que é um memorial a essas vítimas do tráfico negreiro, pessoas que morreram e foram jogadas em valas comuns, ali naquela região, perto da Igreja de Santa Rita. Diria também que o Valongo é um alerta para um projeto que considero de esquecimento para o Brasil. O Brasil nunca teve um grande museu nacional da escravidão e da cultura afro-brasileira. O Brasil tem Museu do Amanhã, tem Museu da Língua Portuguesa, da Imagem e do Som, mas não tem o museu da história africana brasileira. Acho que o Valongo seria um lugar candidato natural a abrigar esse museu. Tenho defendido que o museu deveria estar no Valongo ou no centro da Esplanada dos Ministérios.

Arnaldo Niskier: O Brasil teve relações com países africanos, como Daomé. Eram relações muito íntimas, um comércio bastante ativo. Por que Daomé?

Laurentino Gomes: O Daomé foi um dos reinos que nasceram em função do tráfico de escravos. A demanda por mão de obra cativa na África se tornou tão grande a certos momentos. Os europeus começaram a financiar os chefes locais com armas, munições, mercadorias, dinheiro. Isso acirrou as rivalidades e começaram a surgir estados nacionais, novos estados na África, com o objetivo de fornecer mão de obra cativa, um deles era o Reino do Daomé, onde é hoje a República do Benim. Então, o Reino do Daomé e o Império Oió guerrearam entre si, durante várias décadas, e os perdedores eram vendidos para os navios negreiros. E é muito interessante, porque os dois primeiros soberanos que reconheceram a Independência do Brasil eram vendedores de escravos: o Rei de Onin, que é a atual cidade de Lagos, na Nigéria, e o Rei do Benim. Foram os dois primeiros soberanos que reconheceram a Independência do Brasil em função do interesse que eles tinham na venda de cativos para o Brasil.

Arnaldo Niskier: É tão importante esse estudo que você fez para a História do nosso país, para a preservação de certos valores que adquirimos com os povos africanos e que isso sirva de modelo, inclusive para a educação brasileira, porque precisamos muito disso.

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura