Novembro, 2022 - Edição 285

Açores

Açores: arquipélago no meio do Oceano Atlântico. Ilhas dançam sobre o mar. Destroços de um continente formado por lavas vulcânicas, caldeiras que viraram rios e chuvas de pedras pomes. Paisagens que impressionam: campos verdes, vilas de pescadores, areias com fosforescências ao sol, restos de antigas embarcações, touceiras de hortênsias azuis, vinhedos cultivados entre as rochas. Nessas praias naufragaram navios, aportaram as caravelas dos Descobrimentos, saltaram marinheiros, corsários, escravos, fidalgos, condenados e todo tipo de aventureiros. Os portugueses começaram a povoar as ilhas por volta de 1432. Ali ingressaram também flamengos, bretões, norte-africanos. Construíram castelos, fortalezas, fortes, redutos, trincheiras, em meio a raios e furacões.

Entre açorianos ilustres, destacamos Gaspar Frutuoso (1522- 1591), o sacerdote, o historiador, o humanista enciclopédico, literato, interessado em estudos de alquimia e mineralogia. Foi pároco na Ilha de São Miguel, dedicando-se à caridade dentro e fora da ilha. Escreveu Saudades da Terra, um precioso manuscrito, em seis volumes, com informações sobre usos e costumes, toponímia, fauna e flora dos arquipélagos de Açores, Madeira, Canárias e também de Cabo Verde. O cronista insulano de toda a chamada Macaronésia. Cópias parciais foram publicadas postumamente e o conjunto completo encontra-se na Biblioteca de Ponta Delgada. Cordilheiras, montanhas, picos e ilhas, toda uma geografia revelada, vista de perto e de longe. Sentia-se vivo e intenso entre as ilhas, pois toda ilha é propícia à meditação, ao silêncio e à solidão.

Neste ano em que se celebra o quinto centenário de nascimento de Gaspar Frutuoso, assistimos a duas brilhantes comunicações sobre ele, em sessão da Academia das Ciências de Lisboa: “Memórias das ilhas, na solidão do Atlântico”, do professor António Valdemar e “Estas ribeiras de pedra derretida”, do professor José Damião Rodrigues. Imagens de búzios multicores, mares, calhaus, estátuas, igrejas e azulejos portugueses, leitura de trechos do Saudades da Terra. Emigrantes dos Açores fundaram cidades brasileiras como Barra Velha, Porto Alegre, Florianópolis, Laguna. Entre esses açorianos, estavam a mãe, Matilde e a avó, Jacinta Garcia Benevides, da poetisa e professora Cecília Meireles (1901-1964), nome icônico do modernismo brasileiro e uma das grandes escritoras da Língua Portuguesa.

O pai de Cecília morreu três meses antes de seu nascimento, e sua mãe, quando ela tinha apenas três anos. Órfã, Cecília passou a morar com sua avó Jacinta, que lhe contava histórias do mágico folclore açoriano: amores proibidos, bruxas, bois de estimação, lobisomens, navios soltando vapor povoavam o imaginário da menina. A avó também conhecia cantigas como a da Bela Aurora, que chorava a falta da doce companhia de seu amor: “A Bela Aurora na serra, não sei como não tem medo: faz a cama, dorme só, debaixo do arvoredo.”

Talvez por isso Cecília tenha escrito tantos poemas-canções, cheios de melancolia, de mares e abismos de amor, como este: “Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar – depois, abri o mar com as mãos para o meu sonho naufragar.”

Elegia, poema em memória da amada avó Jacinta, é também doloroso: “No dia seguinte, estavas imóvel, era tua forma definitiva modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos. Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho, a mesma claridade da lua.” A vida é um oceano cheio de ilhas de sofrimento. Gostaria de pegar um barco e alcançar os Açores: a Ilha das Flores, a do Corvo, a do Pico, as encruzilhadas todas das rotas transatlânticas. Sair de cada ilha para melhor conhecê-la. Sair de mim mesma para me observar como se eu fosse uma ilha isolada num grande e misterioso arquipélago.


Por Raquel Naveira, membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e do PEN Clube do Brasil.