Panorama literário

No primeiro trimestre de 2022, recebi livros de Josina (Jô) Drumond, Jorge Elias Neto e Matusalém Dias de Moura. Jô Drumond, poeta, ensaística, contista e tradutora, com mais de 20 publicações, me presenteou o livro Poémáqua – Poemas e aquarelas, dividido em três partes: Diversos, Reflexões e Amores, e a obra Simplesmente Mulher.

Poémáqua (2021) contém trinta aquarelas e trinta poemas em português e francês. Os quadros reforçam a mensagem lírica na contemplação da natureza e da vida. Há nos poemas uma estrutura espiritual sem um arcabouço lógico. Simplesmente Mulher, publicada neste ano, 2022, é uma coletânea de contos e estudos sobre uma situação que envolve personagens femininos. Os temas são diversos, predominando os sobre casamentos bem e malsucedidos e suas leis, e sobre situações de abuso sexual e de poder contra a mulher.

Jorge Elias Neto, poeta e médico, autor de mais de oito livros de poesia, nesse período de pandemia publicou duas obras poéticas: A Arte do Zero (2021, 64 p.) e Manual para Estilhaçar Vidraça (2021, 128 p).

Em Manual..., nos cinquenta manuais, não encontramos normas, mas uma “estilhaçada” e labiríntica leitura de poemas que, num jogo humorístico, nos vai revelando os absurdos que a vida oferece. Exemplo, p. 109-110, o poema Manual das praticâncias com os desuntesílios modernos, no qual o eu poético nos apresenta uma desrazão, ou a inutilidade da vida e a desesperança do homem: “O ser contorcido e minúsculo,/ perdido nas mendicâncias,/ aturdido,/ não tem sequer lembranças/ dos caules das plantas,/ do céu, do mar,/ doque teria sido levitar/ sobre um resquício de esperança.// Vaga na massa cinzenta/ das ruas, refém das cores/ cruas, frias,/ desprovidas do milagre do mistério,/ calculadas para trazer miséria/ e ganância ao homúnculo/ e seus sentidos,/ e sua soberba,/ e seu olhar de súplica/ – seu desejo solúvel,/ transformado em uma nova fé// e sua culpa inútil, por não ser feliz.” Em A Arte do Zero (64 p.), nas 34 composições poéticas, há uma niilidade da vida e das coisas e grande tensão emocional como o poema Ser semente, p. 55: “Os corpos semeados/ em jazigos/ também são obras do acaso/ e se igualam/ em sua substância última/ – não carregam nas moléculas/ partículas de soberbia.” Mas também os versos podem nos revelar uma impotência do eu poético como no poema Zero hora: “Sou o princípio,/ não passagem;// momento prece/ dos ponteiros rendidos/ ao capricho do tempo” (p. 38).

Matusalém Dias de Moura entre os seus 30 livros, de contos, haikais e sonetos, presenteou-me Salmos das Montanhas, 2021, 79 p., com 79 poemas. Surpreendeu-me o novo aspecto formal matuseano, pois não eram nem sonetos, nem haikais, mas delicadas composições poéticas construídas com versos livres, que, numa espécie de desabafo, o poeta nos vai apresentando, com afeto e pouco a pouco, a vida que cresce num meio rural entre vizinhos amigos e familiares. Em suas lembranças, guardadas num recipiente onde ressoa a música do universo, como um caracol que deixa ouvir um ruído de vagas, fluem, nas métricas e rimas, ecos de um universo de harmonia terrunha. Nesse ambiente de pai, mãe e pessoas amigas, o poeta em criança via um Deus diferente do de agora “[...] em cada rosto queimado de sol,/ suarento e cansado. [...]” mas “[...] um velho feito de nuvens/ dessa das tardes de verão densas./ às vezes claras, às vezes escuras/ sombreando várgeas e montanhas,/ e que, movidas pelo vento,/ desenham diferente figuras no infinito. /[...]” (p. 50, poema O Deus de minha infância).

Salmos das Montanhas é um canto ao rincão Natal do poeta. Nele une a poesia e o homem, e não deixa de mencionar o nascer de Iúna, no poema A cidade, p. 15: “No princípio, era a mata,/ o Rio Pardo, os peixes, as aves./ Depois o homem,/ a enxada, a foice, o machado:/ força bruta construtora/ (ou destruidora?)/ a erguer a primeira rua, o vilarejo, as famílias,/ o bem comum dos moradores.../ o tempo fluiu/ e, devagar, a vila transformou-se/ numa cidade de pedra.../ Dos telhados e quintais,/ restam, apenas, encardidas fotografias/ guardadas nos fundo de gavetas e baús,/ em meio a traças e coisas velhas/ a reavivarem lembranças e memórias,/ enquanto Iúna caminha rumo a um outro depois.”

Essa obra me fez lembrar duas obras com fortes traços autobiográficos: o Poema sujo de Ferreira Gullar, e El país del Rey e a Casa Imaginária de Roberto Almada. Gullar, num cenário de São Luís, com figuras de pai, primo, tio, vizinhos que povoaram a sua juventude, faz o seu desabafo poético. Roberto Almada, com simplicidade e ternura, reelabora a realidade encobrindo o que não merece ser exibido. Constrói o seu mundo poético numa casa onde “por dentro muito segredo/ por fora silêncio e medo”. Seleciona o espaço, limpa-o e recobre-o com palavras que vão escamoteando um objeto, substituindo-o por outro, evitando o “real”. Essas obras, como cada dedo de nossa mão, variam no aspecto formal, mas se identificam na qualidade.

Por Ester Abreu Vieira de Oliveira - Presidente da Academia Espíritosantense de Letras