Crer ou descrer, eis a questão

Oriunda de família extremamente religiosa, fui batizada, catequizada e crismada. Repetia como papagaio o que me havia sido ensinado pelas freiras, durante a catequese. “Quem é Deus? Deus é um espírito perfeitíssimo e eterno, criador e redentor do Céu e da Terra.” Na minha ingenuidade, repetia aquilo de cor, sem saber o que era “espírito”, o que era “redentor” e muito menos quem era “Deus”. A distinção entre Céu e Terra era simples. Sabia que o céu era azul e a terra, marrom; que o primeiro ficava acima da minha cabeça e a segunda, sob meus pés.

Quando criança, em Patos de Minas, eu me ajoelhava semanalmente num confessionário, em vista da comunhão dominical. Toda boa menina tinha que mostrar sua pureza no ato da comunhão. Lembro-me de que, como não tinha pecados, fiz uma lista de eventuais deslizes, considerados por mim faltas graves, como, por exemplo: roubei biscoitos na despensa da mamãe; dormi sem rezar; falei palavras feias; desejei mal ao próximo; tive maus pensamentos... Recitava a mesma listinha todos os sábados, diante de um confessor que nada dizia. Apenas passava a penitência, que pouco variava: rezar um Pai Nosso e duas ou três vezes a Ave Maria. Um belo dia ele me perguntou que mal eu havia desejado ao próximo. “Desejei que minha coleguinha tropeçasse e caísse”, respondi. A penitência não mudou. Pensei que fosse me perguntar também quais eram os maus pensamentos. Certamente ele não se animou. Seria pura perda de tempo inquirir os pecados de uma garotinha de sete ou oito anos de idade. Além do mais, a fila tinha que andar.

Na adolescência, fui membro efetivo da Legião de Maria. Fiz trabalhos legionários em enfermarias de hospitais e na periferia. Rezava diariamente, antes de dormir, a catenaslegionis, cuja antífona ainda permanece em minha memória: “Quem é essa que avança como a aurora, formosa como a Lua, brilhante como o Sol, terrível como o exército em ordem de batalha?” Naquela mesma época, como catequista, eu continuava repetindo aos pimpolhos o que havia aprendido no ensino religioso.

Aos 17 anos, todas as normalistas deveriam comungar durante a missa de formatura. Minha classe era numerosa. Fomos juntas, cerca de sessenta colegas, à igreja dos padres capuchinhos, em Patos de Minas, para a confissão. O padre, ao se dar conta da quantidade de moçoilas, não se animou a atender uma a uma. Disse que faríamos uma confissão comunitária. Eu nunca havia ouvido tamanho disparate. O que seria confissão comunitária? Teríamos que dizer publicamente, em voz alta, nossos pecados?

Ele fez uma pequena pregação, solicitou alguns minutos de silêncio para que nos lembrássemos, nos arrependêssemos de nossos pecados e pedíssemos perdão, em linha direta com o Todo Poderoso. Depois de algumas orações, abençoou-nos e nos liberou. Não entendi a razão pela qual ninguém nunca havia mencionado essa possibilidade de eu ser perdoada pela divindade, sem me ajoelhar diante de um confessor. Fiquei revoltada por ter-me submetido inutilmente ao rito semanal de ir à igreja, durante tantos anos, desde a primeira comunhão. Enfrentava fila todos os sábados, repetia minha inútil lista fictícia diante do confessor, pagava penitência em falso alto de contrição, visto que os pecados eram inventados, para poder comungar durante a missa dominical, usando mantilha branca, símbolo da pureza. Quanta hipocrisia!

Diziam no catecismo que, ao recebermos a hóstia consagrada, na ponta da língua, ela deveria ser colada no céu da boca até à dissolução completa. Como se tratava do corpo de Jesus, se a mastigássemos, o sangue escorreria boca abaixo. Eu tinha o maior cuidado para que a hóstia nem tocasse os dentes. Não queria aparecer com a boca suja de sangue, dentro da igreja. Após a “famosa” confissão comunitária, comecei a duvidar desses disparates. Certo dia, em ato de rebeldia, fiz questão de mastigar a hóstia. Nada aconteceu.

No início dos anos setenta, houve radical mudança de vida. Entrei para uma Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, na capital do Estado. Tive então oportunidade de conhecer jovens de minha idade, leitores de Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, entre outros existencialistas. O universo das Letras e da Filosofia se descortinava para a crédula provincianinha, que começava a inquirir tudo o que lhe havia sido inculcado. Desde então, ela passou a desacreditar nos ensinamentos religiosos e a questionar os dogmas.

Nos dias de hoje, sabe-se que, com a ajuda da ciência, que o fato de ter fé não acontece por vontade própria, nem pelos ditames do destino. No início deste terceiro milênio, pesquisas científicas confirmam que os indivíduos portadores do gene VMAT2 são intuitivos e mais religiosos. Os que não possuem tal gene, no meu caso, são mais reflexivos, têm raciocínio lógico e dificuldade em acreditar em algo impreciso. Ter fé significa crer prontamente, sem exigir comprovação científica, ou seja, acreditar sem perscrutar. Destarte, bem-aventurados os portadores do VMAT2, pois crer dói menos que descrer.

Por Jô Drumond é escritora, tradutora juramentada e artista plástica. Já publicou 18 livros.