As aventuras do conselheiro Aires em Brasília

“É por causa de gente como o senhor, sempre disposto a acomodar,
que as coisas não avançam, Hugo falou.
O senhor é puramente livresco, disse Miguel, no centro da mesa.
Um homem de papel, completou Hugo.
Isso não posso negar, respondi contrariado.” (Pág. 145).

Quem respondeu contrariado foi o conselheiro Aires, personagem-narrador que migrou do romance Memorial de Aires (1908), de Machado de Assis, para o recém-lançado Homem de Papel (2022), de João Almino, seu oitavo romance. Ambos dispensam apresentação.

Machado, o clássico da literatura de todos os tempos; Almino, o clássico moderno, autor do magnífico Cidade Livre (2010), entre outros excelentes romances e ensaios de história e filosofia política. Ambos imortais da Academia Brasileira de Letras.

Pois foi com o espírito da paráfrase, da literatura fantástica, da graça cult que Almino construiu esse romance pós-moderno, homenagem ao “bruxo do Cosme Velho”. Ninguém poderia fazê-lo melhor: diplomata de carreira, mergulhou no personagem aposentado, pacifista (mais por tédio à controvérsia) e bebeu suas palavras, sua moderação e elegância. E, num poderoso exercício de imaginação, trouxe-o para Brasília. Diz ele:
“Meu nome, não sei se terão adivinhado, é José da Costa Marcondes Aires. Nasci no Rio de Janeiro às seis da tarde em 17 de outubro de 1825 e acordei em Brasília confundido por siglas. Mesmo sem ser aristocrata, me infiltrei na aristocracia quando passei em 1852 num concurso para a Secretaria de Estado de Negócios Estrangeiros. Depois de hesitar se aceitaria uma encarregatura de negócios junto à Gran Colombia, onde havia estado um visconde conhecido meu, fui enviado a Viena.” (Pág. 31).

Assim se constrói a trama desse romance encantador: uma diplomata “arretada” da nova geração de nome Flor recebe um presente e não se desgruda mais dele, o romance Memorial de Aires. Personagem forte, inteligente, franca, mulher de quase de meia idade, que sabe o que quer (menos quando tem de escolher o parceiro com quem ficar). O livro que, segundo ela, a acompanharia pelo resto da vida, era um guia para a sua carreira. Casada, mãe de um filho, e com relacionamento extraconjugal com um diplomata superior hierarquicamente, Flor tem vida amorosa complicada. Ela, Cássio, o marido, e o amante Zeus formam o triângulo desamoroso da história.

Almino “entra” no Memorial de Aires e utiliza palavras e expressões do livro num diálogo que mantém vivo o romance, tecendo a narrativa com personagens equivalentes aos da história original. Dentro do livro, na mão ou na pasta de trabalho de Flor, o conselheiro aposentado acompanha-a em passeios em Brasília e em viagens, a exemplo da ida a Viena, onde queria rever o túmulo da mulher e o de Beethoven, cuja ópera Fidélio com a abertura “Leonora” tem mais de um sentido na obra. A narrativa desperta o interesse do leitor cada vez mais pelo elemento fantástico que, curiosamente, se desfaz pelo fato de as próprias personagens tratarem o livro falante com naturalidade (como na Metamorfose, de Kafka, em que a família não se espanta em ver Gregor Samsa transformado em inseto). Há também ecos de Borges quando a fantasia e as pistas falsas, como obras e sites inexistentes, deixam o leitor desnorteado. Artimanhas do autor.

O conselheiro Aires, uma espécie de guru da diplomacia para Flor, aparece inicialmente como personagem machadiano em Esaú e Jacó, romance de 1904, para, em seguida, ter um livro só seu, de memórias, o Memorial de Aires, de 1908, ano da morte de Machado. Em Esaú e Jacó, o autor focaliza o fato político da Proclamação da República, em 1889. No Memorial, o tempo histórico é 1888, ano da Abolição da Escravatura no Brasil. E, no Homem de Papel, Almino concentra a ação neste selvagem 2022, ano de eleições, destacando-se a de presidente da República, e faz um contraponto com as duas obras citadas, no sentido de discutir com espírito crítico a insana situação política do país, no passado como no presente. Replica, portanto, os personagens: os gêmeos briguentos Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó, em Miguel e Hugo (trigêmeos com Flora) igualmente beligerantes e irreconciliáveis, metáfora sutil para o Brasil de hoje. Por sua vez, Flor lembra a indecisa Flora quanto à escolha do parceiro, enquanto Leonor, a professora argentina especialista no conselheiro-personagem, guarda semelhança com Fidélia, a jovem viúva que despertou todos os sentidos (ocultados) do velho conselheiro Aires.

Fidélia, Leonor – tema da fidelidade conjugal em Beethoven. A ideia do autor é muito feliz, pois utiliza um recurso cômico ao fazer o velho conselheiro viajar ao futuro e ao passado, do qual, na verdade, nunca saiu, com sua cultura e linguagem polida, seu colete, fraque, botinas enceradas e bigode retorcido. Todo ele démodé. Mas ninguém em Brasília repara... Ele sai e volta ao livro com desenvoltura, como um animalzinho de estimação – e obediente – de Flor, que o guarda com todo o cuidado. Mas as coisas mudam e ele vai parar até num sebo. E em lugares piores. Muito piores. É um personagem falante. Um verdadeiro “audiobook”.

O melhor do livro é esse jogo, uma espécie de “miseenabyme”, um romance dentro do outro, o que é muito engenhoso e divertido. Há também um “trompe-l’oeil” literário que brinca com a própria narração, uma vez que os personagens de Homem de Papel dizem ao conselheiro que ele não tem existência real, que é um personagem de romance, um homem sem carne – de papel –, quando na realidade esses mesmos personagens são igualmente de papel para o leitor. Sem contar a aparição do enigmático editor M. de A. para aumentar o imbróglio.

Os personagens do Memorial dialogam entre si, a exemplo de dona Cesárea, velha amiga de língua afiada, que pede ao conselheiro que volte ao passado. Os diálogos se alternam entre passado e presente, num exercício de intertextualidade, o que na narrativa significa futuro, num jogo entre ficção e... ficção.

E o conselheiro, homem conservador, vai se adaptando à nova vida, se soltando muito à vontade, protagonizando mil e uma peripécias, rebelando-se, o que preocupa Flor: “conselheiro, imploro que as situações que o senhor anda criando parem por aí. O senhor sabe o carinho e o respeito que tenho pelo senhor.” (Pág. 117). Algumas delas como fazer pagamentos com moedas do século XIX que ainda trazia no bolso; fugir sem pagar a conta; frequentar as redes sociais com milhões de seguidores; ser guiado por um cego pelas ruas de Brasília; visitar o palácio do Itamaraty (de onde quase foi expulso); lidar com fake news e participar de manifestação política na Esplanada dos Ministérios. Esta, particularmente hilariante, tem alguma coisa de O Rinoceronte, de Ionesco, pelo absurdo da situação. Assim como a sessão na Câmara dos Deputados, cuja comicidade atinge o paroxismo com a discussão acalorada sobre a questão de uma anta ser candidata às próximas eleições. (Num país que quase elegeu um macaco, o Tião, à prefeitura do Rio de Janeiro, tudo é possível). Almino utiliza com muita graça o jargão de todas as categorias sociais, bem como os mais variados registros linguísticos como profundo conhecedor da língua portuguesa que é, e não só da língua de Machado de Assis, cujo representante no romance é o conselheiro Aires, homem lido e relido, leitor de Shelley, Dostoiévski, Platão. Sobrevivendo a si mesmo, diz: “Vocês pensam, logo existo.”

Assim, o embaixador João Almino com sua prosa vigorosa mais uma vez declara o seu amor a Brasília de JK, Lúcio Costa e Niemeyer, que, agradecida, o abraça calorosamente; cidade aberta ao novo e ao velho – que nela se encontram, ou se cruzam, como os dois eixos que formam o traçado da cidade. Assim também, o velho diplomata, exumado, se encontra com o novo Brasil, que, dividido, anseia por dias melhores. Que hão de vir.

Por Vera Lúcia de Oliveira - Da Academia de Letras do Brasil.