Novembro, 2020 - Edição 261

Presença da mulher na cultura brasileira

Entrevista - transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado, por A r n a l d o N i s k i e r , no Canal Futura.

Arnaldo Niskier: Estamos recebendo a visita, via internet, da nossa estimada acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira. Ela é escritora, cronista, lida com os problemas da cultura e cuida também dos interesses da mulher. Como você vê a presença da mulher na cultura brasileira?

Rosiska Darcy de Oliveira: Há muitos anos, venho observando e incentivando a participação das mulheres na cultura brasileira, mas nunca precisei incentivar muito, só dar visibilidade a elas, porque a presença das mulheres na cultura brasileira é evidente. Que você procure na literatura, que você veja na música, as grandes cantoras e compositoras que temos, grandes pintoras, não há uma manifestação artística em que não haja uma presença relevante das mulheres. Não estou citando nomes exatamente para não esquecer ninguém, mas poderia citar. Além disso, temos grandes intérpretes de todo tipo, atrizes de teatro que são verdadeiros ícones da cultura brasileira...

Arnaldo Niskier:A Academia Brasileira de Letras, instituição à qual pertencemos, tem cinco mulheres no seu quadro. São quarenta acadêmicos e acho que tem só cinco mulheres. Você não acha um número pequeno demais para a relevância das mulheres na nossa cultura?

Rosiska Darcy de Oliveira: Evidente que acho. Há anos, você sabe tão bem quanto eu, era proibida a entrada das mulheres na Academia. Há anos, isso já era um escândalo, visto que tínhamos grandes escritoras que deveriam estar lá. Hoje temos cinco mulheres sob quarenta nomes, é lamentável. Inadmissível, porque não é uma questão de ter uma paridade entre homens e mulheres. Não é isso. Temos nomes na literatura brasileira que merecem largamente uma consagração, como é a consagração da Academia Brasileira de Letras, e não menos que outros homens, que também merecem, mas não uma desproporção tão grande que não pode ser senão o resquício de um tempo lamentável em que havia essa discriminação. O que precisa acabar é a discriminação ao contrário, quer dizer, mulheres não entram.

Arnaldo Niskier: Envolve também a questão do negro. Machado de Assis, nosso grande patrono, era descendente de negros. Essa dúvida deixou de existir há muito, a Academia acolheu Machado, que foi seu primeiro presidente, por quase dez anos, e hoje esse problema se põe novamente. Você não acha que da mesma forma como há poucas mulheres na Academia há também poucos negros?

Rosiska Darcy de Oliveira: Acho. Isso é uma manifestação a mais do fato que há poucos negros em todos os lugares de prestígio da sociedade brasileira e isso é mais do que injustificável, porque a presença dos negros na cultura brasileira é constitutiva, quer dizer, não existe cultura brasileira sem o elemento da cultura negra. Temos isso na língua, na própria língua portuguesa, e em todas as manifestações culturais. Alguns dos grandes gênios brasileiros são negros e temos uma população que é, majoritariamente, creio, mulata. Isso mostra que a cultura brasileira foi marcada por essa mestiçagem, que é seu grande trunfo, sua maior qualidade. A sociedade brasileira é uma sociedade mestiça e esse é nosso grande trunfo, essa é a nossa riqueza. Não consigo imaginar o Brasil sem a presença cultural dos negros. Isso é um Brasil impensável, um Brasil que não existe.

Arnaldo Niskier: Está se comemorando o centenário da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a primeira universidade pública criada no Brasil. A reitora da UFRJ escolheu, para comemorar o primeiro centenário, a figura de Pixinguinha, que é uma figura ligada à Escola Nacional de Música, compositor inspiradíssimo, negro. Ele tinha orgulho dessa condição e temos orgulho de ter o Pixinguinha como elemento cultural de primeira ordem. Você não acha isso muito bonito?

Rosiska Darcy de Oliveira: Acho extraordinário como escolha e é muito relevante, nesse momento em que isso está sendo reivindicado pelos próprios negros. Essa não pode ser uma reivindicação apenas dos negros, isso deve ser uma reivindicação democrática da sociedade brasileira. A democracia brasileira, assim como ela exigiu e exige a participação das mulheres, em todos os níveis, que também não existe ainda, igualmente isso se aplica aos negros. Não temos a menor condição de fingir que hoje ignoramos isso, que isso não existe. A sociedade brasileira tem que assumir a responsabilidade de dar um lugar digno a esses criadores, porque eles têm nos dado algumas das coisas mais maravilhosas da cultura brasileira, dar a eles o lugar de prestígio que lhes cabe na nossa sociedade.

Arnaldo Niskier: Você é também educadora, inclusive com experiência internacional muito grande. Você não acha que isso tudo teria que começar pela educação, pela escola?

Rosiska Darcy de Oliveira: Sem dúvida nenhuma, isso deve começar em todos os espaços da sociedade, mas já deveria ter começado, há muito tempo, na escola. Somos defensores da escola pública e a escola pública foi o primeiro passo. Fui aluna de escola pública, tenho disso enorme orgulho e gratidão, porque foi uma escola que me formou para a vida. Vivia numa classe, majoritariamente, branca, mas com presença importante de negros e de mulatos. Essa escola ainda não era democrática, mas já havia pelo menos um esforço nesse sentido. A escola pública é um instrumento fundamental na promoção de todos aqueles (e é o caso da maioria da população negra no Brasil) que dependem de um Estado que lhes ofereça oportunidades, todos aqueles que estão em classes mais carentes da sociedade, que dependem dessa escola pública. Acho que a luta contra o racismo deve começar, sim, desde a escola.

Arnaldo Niskier: Você sofreu na pele a amargura de ter que viver alguns anos fora do Brasil por motivos políticos. Quantos anos foram? Você não morria de saudades do país?

Rosiska Darcy de Oliveira: Quinze anos. Claro que sim, não é possível não ter saudade do Brasil. Além de tudo, sou carioca. Tinha muita saudade do Rio de Janeiro e, sobretudo, da Floresta da Tijuca, onde nasci e moro até hoje.

Arnaldo Niskier:Como você viveu esses tempos de pandemia? Enclausurada?

Rosiska Darcy de Oliveira: Estou, juntamente com o Miguel, há seis meses, sem sair de casa. Estou vivendo isso com muita tristeza, porque considero que o que está acontecendo, no mundo e aqui no Brasil, é uma imensa tragédia que vai marcar nossa vida e todas as gerações que estão passando por isso. Uma situação totalmente inesperada e, mais do que isso, impensável, que mudou completamente nossa existência, quebrou as balizas do cotidiano, o tempo, a habitação do espaço, a fronteira entre os vivos e os mortos e instalou uma incerteza e um medo dentro de todas as casas. Enfim, tem sido um período muito difícil. Não posso me queixar, porque acho que há pessoas que estão atravessando isso em circunstâncias muito mais difíceis do que as minhas. Isso só faz com que reforce nossa obrigação, nossa responsabilidade, diante dessas pessoas que precisam de ajuda, como uma manifestação de solidariedade. Há quem fique sonhando com um mundo melhor, quando isso acabar, e espero que assim seja, mas esse mundo não será melhor se não começarmos a melhorá-lo desde já, desde agora.

Arnaldo Niskier: Por falar nisso, estão querendo taxar o livro, no bojo dessa confusão. O que você acha disso?

Rosiska Darcy de Oliveira: Acho isso mais um dos absurdos que está sendo imposto à sociedade brasileira. Isso é um atentado à cultura, em particular aos escritores, aos editores, às livrarias, enfim, a todos aqueles que vivem em torno do livro. Se você pensar bem, que falta de graça teria sido nossa vida sem os escritores... Eu, por exemplo, tenho uma família secreta que são os escritores com quem vivi a vida inteira, aqueles cujo sangue invisível me corre nas veias. Tenho essa família secreta e não sei quem seria sem esses livros que me formaram. Sou uma escritora de livros, quer dizer, também dei minha vida a escrever. Todas as pessoas que têm esse perfil não podem senão ficar revoltadas contra essa mesquinharia, que é colocar um imposto nos livros...

Arnaldo Niskier: Onerar o livro em mais 20% do preço de capa é inibir o público comprador.

Rosiska Darcy de Oliveira: Essas pessoas detestam livros, a cultura, porque em vez de facilitar a vida dos editores, das livrarias, dificultam, tornam a compra de livros uma coisa impossível para a maioria da população. Isso é um atentado, uma estupidez inimaginável. Você consegue se imaginar sem seus livros? E nós, que somos da Academia Brasileira de Letras, temos uma responsabilidade muito grande na preservação disso que é o instrumento da nossa existência. A língua portuguesa se corporifica nos livros que escrevemos e precisamos defender esse instrumento da cultura, contra o reino das trevas, o reino da ignorância. Não tem mais o que penalizar. Vai-se penalizar exatamente um ramo tão importante da cultura brasileira? Acho isso inadmissível. Fiquei muito chocada com isso. Sou contra e acho que devemos exprimir essa revolta, esse desacordo e tentar impedir que isso aconteça de fato.

Arnaldo Niskier: A Academia, mesmo estando em recesso, como se encontra, deu uma nota se solidarizando com manifestações do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, da Câmara Brasileira do Livro. São entidades importantes do nosso país que se manifestaram contra essa ideia do aumento do imposto sobre o livro ou da fixação de um imposto absurdo onerando mais ainda a possibilidade de chegar ao livro.

Rosiska Darcy de Oliveira: Há unanimidade na Academia em torno dessa questão, a nota do nosso presidente foi muito oportuna. Isso é uma batalha que não está perdida e vamos ter que continuar lutando. Agora, a ver a maneira como tem sido tratado todo o Ministério da Cultura, não me admira que o ministro da Economia se permita um absurdo desses. Seria papel do Ministério da Cultura nos defender...

Arnaldo Niskier: Não se ouve uma palavra a respeito do assunto. É um absurdo!

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado, por A r n a l d o N i s k i e r , no Canal Futura.