Outubro, 2020 - Edição 260

À mestra, com carinho

A primeira mestra a gente nunca esquece. A minha foi dona Tereza, cabeça de algodão, que me ensinou a ler e escrever quando eu tinha quatro anos e meio de idade. Contratei-a eu mesma, pois achava que minha mãe não iria aprovar. É que a mestra já dava aulas para o meu irmão mais velho, Vadico. E eu também queria aprender. Assim, peguei a minha inseparável minissombrinha de cabo amarelo e fui à casa da professora. Perguntei se ela poderia me ensinar.

Ela achou muita graça daquela criatura minúscula e, pensando que era fogo de palha, disse sim. Passei no armazém do Zelão, pedi um caderno, um lápis preto e uma borracha macia. Mandei pôr na conta do meu pai, seu Dozinho. Saí de lá soberba com as minhas primeiras armas para enfrentar o mundo, pois seria professora, repetindo o gesto da primeira mestra com nome de santa sabida, agradecendo-a pelo resto da minha vida. É preciso dizer que morávamos em cidade pequena, todos se conheciam, na minha “Macondo”, onde as crianças andavam sozinhas pelas ruas sem perigo, a não ser de encontrar um cachorro solto, sem dono. Daí, vem também o meu sentido de liberdade de vagar pela cidade, de flanar, como dizem os franceses. Assim, preparado o material, iniciei a maior de todas as minhas aventuras: viajar pelo mundo das letras, das palavras escritas em folhas brancas, meu primeiro encantamento, minha primeira epifania. Nunca vi nada mais lindo do que um a maiúsculo em letra cursiva, com aquele rabinho que parecia um escorregador!

Caprichava no desenho das letras, todas lindas, cada uma um novo desafio, um novo mistério. De tirar o fôlego. Como não se admirar com a magreza do I maiúsculo? Ou com a pança do D barrigudo? Como não se surpreender com o H, que não tinha som na palavra hoje? E por que ontem e amanhã não o tinham? As letras, umas magras, outras gordas, outras retorcidas, umas fáceis, outras difíceis, todas eram maravilhosas para mim. Um deslumbramento. Quem teria inventado coisa tão engenhosa?, eu me perguntava. Não há nada mais belo que a palavra. Palavra que me levou para terras distantes nos livros de histórias, que me fez correr com nostalgia por lugares de sonho em que eu nunca poria os pés...

Mas dona Tereza, um mês depois, fez uma visita à minha mãe. Contou que eu já sabia ler e escrever algumas palavras; busqueio caderno e li para elas. Com a mão na cabeça, aminha mãe, dona Odette, surpresa, encantada e preocupada com mais uma conta a pagar, optou, no entanto, pelo progresso da filha pequena, pois também era fascinada pelos livros, que ela nem tinha. Assim, tive as primeiras lições em casa de uma mestra doce, gentil, ao lado do irmão querido. Como esquecer? Aquele a maiúsculo, como o porquinho-da-Índia do Bandeira, foi o meu primeiro namorado.

Por Vera Lucia Oliveira - da Academia de Letras do Brasil.