Setembro, 2020 - Edição 259

Reflexões sobre a arte da escrita

A busca do divino em Trívia de Marco Lucchesi.

Um dos pais da Igreja, São Efraim (ou Efrém, o sírio), que viveu entre 300 a 373 no que hoje conhecemos como Turquia, em algum momento de sua busca espiritual, chegou à conclusão de que é impossível e contrário à limitada razão do ser humano querer definir Deus. A partir dessa constatação, ao lado do estudo e da meditação sobre os dogmas da fé, ele começou a se dedicar ao desenvolvimento de uma teologia que se ancorasse na arte poética. Ao ler o livro Trívia (Editora Patuá, 2019, 180 p.), de Marco Lucchesi, tenho a forte impressão de que a obra segue um caminho similar, ao permitir que o ethos do misticismo ocidental esteja amplamente presente em seus textos (que aqui chamarei de poemas), e uma vez que vejo neles uma tentativa, a partir da literatura, de se vislumbrar a face de Deus, assim como São Efraim buscou em sua obra.

Do mesmo modo que muitos dos poemas de São Efraim, os de Marco Lucchesi em Trívia têm estrutura curta, entre uma e seis linhas, possibilitando uma tessitura de movimentos rápidos, mas precisamente calculados e encaixados. Se considerarmos que uma das grandezas da arte poética é o agrupamento de uma enorme gama de significados em uma composição breve, perceberemos que os poemas de Trívia são ricos dessa qualidade de síntese.

As referências que Marco convida para o seu texto caminham na mesma direção da mística que evoca, uma vez que são, em sua maioria, associadas à busca pelo divino, e mesmo aquelas que não se relacionam diretamente com essa empreitada acabam a ela se prostrando: Safo (630 a.C. - 604 a.C.), Dante (1265-1321), Shakespeare (1564-1616), Goethe (1749-1832), Hölderlin (1770-1849), Frege (1848-1925) etc. São muitos os acompanhantes de percurso que Lucchesi elege. Indubitavelmente, o leitor dedicado irá se regozijar com esses convidados e com a viagem proporcionada pelo livro, mas não devemos nos esquecer de que nunca é fácil buscar desvelar o incognoscível. O primeiro mistério já nos é apresentado pelo título. A qual dos múltiplos sentidos da palavra “trívia” o autor deseja nos indicar, será que a todos eles? A minha primeira clave de leitura foi pensar no termo inglês trivialities, de onde herdamos a noção da palavra com o sentido de curiosidades ou informações de pouca importância. Ora, a obra de Lucchesi pode ter muitos adjetivos, mas não se encaixa no sentido de “trivial”, “coisa menor” ou “vulgaridade” que o vocábulo anglo-saxão carrega. Uma obra que almeja aproximar-se de Deus pode ser tudo, menos banal. É nesse momento que percebo que a palavra me soa como sendo de origem latina e o dicionário Dicio da língua portuguesa me confirma a suspeita, lembrando-me de que o vocábulo também pode ser utilizado para definir o local exato em que três ruas ou três caminhos se encontram. Penso que, por extensão, a partir de “trívia”, podemos ter chegado a um dos usos contemporâneos do vocábulo “trevo”. Ou seja, estamos mesmo em uma encruzilhada em que somos tentados a percorrer todos os caminhos que Lucchesi nos apresenta.

O subtítulo “diário filosófico” parece nos indicar uma pista (elusiva?). Será que podemos ler os textos do livro como recortes que se referem às reflexões filosóficas do próprio autor em sua jornada pessoal? Decido que prefiro ler o livro sem reminiscências biográficas. Atenhome às referências internas da obra, que me indicam que a filosofia também pode ser um dos instrumentos da busca do sagrado. No centro de alguns dos referenciais que a iluminam, encontro Jacob Böhme (1575-1624) e Angelus Silesius (1624-1677). O primeiro desenvolveu uma obra que até hoje influencia o misticismo ocidental de base cristã (veja-se, principalmente, mas não somente, a via cardíaca de Saint Martin (1743-1803) e o segundo foi cultor de uma poética igualmente mística como a de São Efraim, mas marcada pela tensão com o protestantismo de seu tempo. A obra de ambos influenciou profundamente alguns dos percursos que a literatura alemã percorreria nos séculos seguintes, tanto o é que encontramos o seu alcance em Goethe, Novalis (1772- 1801), Hölderlin, dentre outros, também evocados por Lucchesi em Trívia.

A obra, embora possa ser lida como estando unida pelo desejo de vislumbre do verbo divino, é dividida em quinze partes, cada uma delas englobando um corpo temático, por assim dizer. A leitura a seguir é pessoal e parcial, mas enumero assim os degraus da escada (de Jacó) em que se divide o livro de Lucchesi: o primeiro aborda justamente o fragmento e a sua articulação com a unidade; o segundo, o sono e o que guardamos dele na vigília; o terceiro, a fenomenologia da insônia; o quarto, as tensões do ato de traduzir, em que a cabala e a alquimia são algumas das imagens arquetípicas evocadas; o quinto degrau nos apresenta o Eros conduzido por Safo; no sexto degrau, a poética mística de Silesius parece alinhavar o pensamento alemão em uma catedral de translúcida beleza; no sétimo degrau, o autor reflete sobre a musa Clio, ou a História, vista como uma poesia em escala ampla; no oitavo degrau, as linguagens da matemática e da língua falada se amalgamam nas reflexões de Frege; no nono, intitulado a propósito de “nona sinfonia”, prevalecem as meditações sobre música em algumas de suas mais elevadas inflexões; no décimo, a interpretação, a metáfora e a matemática se unem na tentativa de apreensão do infinito; no décimo primeiro, a função, a matemática e a lógica aparecem atravessando o ser em sua busca; no décimo segundo degrau, a poesia e a matemática se unem na composição da significação do mundo; no décimo terceiro, o pensamento ocidental se encontra com o oriental; no décimo quarto, os textos evocam uma teologia das religiões ecumênica, em que um Deus babélico se encontra em seu centro, e, por fim, no décimo quinto degrau, a distância aparece como força propulsora da busca do divino.

Ao terminarmos o livro de Lucchesi, somos deixados com um poema que pergunta se ainda temos tempo de “salvar Deus para Deus”. Interpreto essa última frase como um chamamento para o despertar do Deus que está em nós, que, feitos à Sua imagem e semelhança, precisamos, no entanto, empreender um razoável esforço para retornarmos à Sua casa e fazermos resplandecer a Sua luz em nós. Nada é simples na busca proposta por Trívia, como São Efraim nos pergunta (Hinos sobre a fé I,16), “Como pode o servo, que não conhece propriamente a si mesmo / meditar sobre a natureza de seu Criador?”.

Esta é apenas uma das muitas interpretações que possamos fazer da obra de Lucchesi. Independentemente de nos alinharmos ou não a uma leitura mística do livro, tenho certeza de que o leitor de coração aberto se deleitará com um dos elementos centrais que ele proporciona: uma profunda jornada pelo pensamento literário, filosófico e científico do ocidente (com passagens também pelo oriente) e, obviamente, com o muito que deixei de dizer aqui e que os leitores descobrirão por si mesmos. Ao terminarmos o livro, ficamos com a impressão de que a viagem valeu a pena, mesmo que o vislumbre da face do divino ainda seja uma tarefa impossível ao nosso espírito limitado, há algo nos caminhos de Trívia que pode nos engrandecer como seres humanos. Tudo, no entanto, depende dos caminhos que decidamos empreender em nossas próprias jornadas.

Por William Soares dos Santos - professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e escritor.