Agosto, 2020 - Edição 258

Um século e meio une música e literatura

A ópera Il Guarany de Antônio Carlos Gomes completou 150 anos, no dia 19 de março, de sua estreia em Milão, e completará, ainda, 150 anos no dia 02 de dezembro sua apresentação no Rio de Janeiro. Carlos Gomes, nascido em Campinas, ganhou uma bolsa de estudos de D. Pedro II para estudar na Itália. Começou a composição da ópera Il Guarany entre 1867 e 1868, dez anos depois da primeira edição do romance O Guarani, de José de Alencar, em 1857. E, na história desse romance, apoia-se para compor o primeiro sucesso de uma obra musical brasileira no exterior, em quatro atos, Il Guarany, com a letra, o libreto, em italiano, por Antônio Scalvini.

A estreia da ópera ocorreu no dia 19 de março de 1870, no Scala de Milão. Contudo, no Brasil, foi apresentada no Teatro Lyrico Fluminense, no Rio de Janeiro, numa comemoração do aniversário de D. Pedro II, no dia 02 de dezembro de 1870; e a protofonia, a abertura sinfônica da ópera, foi composta dois anos depois da estreia. Essa é a parte mais tocada dessa ópera, porque é muito apresentada por bandas musicais e foi a vinheta de abertura do jornal radiofônico A Hora do Brasil.

O romance O Guarani, originalmente O Guarany: Romance Brasileiro, da fase romântica do cearense José de Alencar, foi elogiado pelo escritor máximo da Literatura Brasileira, Machado de Assis, como “a expressão mais íntima de nacionalidade”. Foi desenvolvido a princípio em folhetim, tem quatro capítulos e cada um traz subcapítulos titulados. O capítulo primeiro aparece no Diário do Rio de Janeiro no dia primeiro de janeiro de 1857. É um romance histórico, relata a miscigenação entre uma jovem adolescente loura de olhos azuis, Cecilia (que passará a ser chamada Ceci), de estirpe nobre portuguesa, e um índio da raça dos Goitacás, filho de Ararê, o chefe da tribo.

Depois de um prólogo, com um recurso cervantino de recontar uma história proveniente de um velho manuscrito casualmente encontrado e quase estragado, passa para uma comunicação ao Leitor, sobre a primeira publicação do livro, 1857, uma prova tipográfica, para ser revista pelo autor. Pede desculpas ao leitor, pois, relendo a obra, “achou ele tão mau e incorreto”. Da Primeira Parte, destacamos os capítulos Os Aventureiros e I Cenário, quando o leitor toma conhecimento do local onde acontecerá a história, (entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo) às margens do rio Paquequer, numa casa “larga e espaçosa, protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique”. Sua construção obedecia à segurança e defesa da família.

No capítulo II, Lealdade, o leitor toma conhecimento dos proprietários dessa moradia: D. Antônio de Mariz, fidalgo português e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro, auxiliou Mem de Sá na consolidação do domínio de Portugal; sua família, composta de quatro pessoas: sua mulher, D. Lauriana, dama paulista, seu filho, D. Diogo de Mariz, sua filha, D. Cecília (Ceci), e a bela morena, D. Isabel, sua sobrinha. Havia, ainda na casa, os serviçais, o jovem nobre D. Álvaro, Aires Gomes, o fiel escudeiro, e os aventureiros, entre estes se destaca o perverso Loredano, antigo frade. Ceci era querida pelo pai, desejada por Loredano, amada por Álvaro e adorada por Peri.

As partes mais significativas dessa obra para a ópera são: O IV capítulo, Caçada, da Primeira Parte, onde aparecerá o índio Peri, caçando uma onça viva, para levar para a sua senhora Ceci. Ele é descrito vestindo uma túnica de algodão, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates. Seu talhe era delgado e esbelto. “Cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes, dentes alvos.” Nessa primeira parte, D. Álvaro, em uma de suas caçadas, mata, sem querer, uma índia, da tribo dos violentos Aimorés. Na Segunda Parte, o narrador diz a época em que a história iniciou: março de 1603. Narra a ocasião em que Peri apareceu entre eles e o carinho de D. Antonio e Ceci, por ele. Destaca o amor de Isabel e o amor de Álvaro para com Ceci que passará para Isabel. No capítulo XII apresenta-se uma trama entre os aventureiros, encabeçada por Loredano contra a família, e o desejo de Loredano possuir Ceci e o canto de Ceci sobre o amor de um rei medieval no capitulo IV A Xácara.

Na Terceira Parte, Os Aimorés, no capítulo III, Verme e Flor, Loredano entra no quarto de Ceci para raptá-la, Combate, além do XIV, O prisioneiro, Peri faz um ato heroico indo lutar com os Aimorés por amor a Ceci. Na Quarta Parte, ocorre a cristianização de Peri e a salvação dele e de Ceci, a catástrofe, a destruição do casarão por Don Alfonso e morte de toda a sua família, dos aventureiros e dos Aimorés.

A intertextualidade entre a ópera e o romance não desmerece o seu valor. Além disso, as obras de artes estão sempre em sintonia. A apropriação, ou a influência ou a relação entre dois textos, representa papel significativo na constituição estrutural da obra e da sociedade que as engendrou. Buscamos interfaces entre música e literatura para ressaltar a problemática da construção de um imaginário da nacionalidade brasileira, emblemática na sociedade do século XIX, que deu motivo a uma tentativa de mostrar ao mundo europeu uma visão da história do Brasil, sem eliminar os protótipos da arte europeia. Também sabemos que a literatura, como todas as artes, como fenômeno de civilização, se constrói com os anseios explícitos ou implícitos de uma sociedade. Por isso, cumpre observar que entre O Guarani e Il Guarany, obras de diferentes áreas do saber, o tratamento das duas diferentes obras e das duas diversas áreas do saber não se corrobora uma hipótese de fontes e influências, mas um diálogo entre dois campos de saberes, isto é, um ato criativo.

O diálogo entre signos transforma um romance em uma ópera, demonstra a habilidade e inteligência de um homem de seu tempo, Antônio Carlos Gomes, de gosto artístico – músico, professor de piano e canto, compositor de modinhas e ópera – que procurou aperfeiçoar-se nesse campo do saber (estudou no Conservatório do Rio de Janeiro e no Conservatório de Milão). E mais, tinha sido aluno de um grande compositor, Lauro Rossi, e recebeu elogios de todos os professores. Viveu na Itália, na época de apogeu da ópera italiana, com Rossini, Bellini e Verdi, e de gosto artístico da elite brasileira, como comprovam os romances de Machado de Assis e os jornais da época.

Inteligente, aproveitou um tema histórico e de miscigenação de uma obra que era best-seller; a curiosidade do europeu por um imaginário exótico; o apogeu da música de influência italiana; o gosto artístico da elite intelectual brasileira, para mostrar a cultura nacional, ao mesmo tempo em que agradava ao Imperador que gostava de música e era o seu mecenas na Itália. Mas não podia deixar de agradar também ao público europeu. Por isso, em sua ópera, há modificações estruturais da obra mestre e o libreto é em italiano. Na estreia da ópera, o exotismo será mostrado nos adereços, como penas e cocares, nos instrumentos de percussão, nos ritos e nas danças de guerra das tribos indígenas, e nos cenários: uma floresta exuberante, com palmeiras e um castelo como uma fortaleza oriental, tendo na entrada um arco como uma arquitetura muçulmana. O quarto de Ceci se assemelha a um rico palácio nobre do século XVI. A aldeia dos aimorés é representada por uma tenda rendada com arabescos. As túnicas dos índios (brancos) eram azuis e brancas. Peri não é moreno, típico índio dos Goitacases, nem tem os pés descalços, usa sandálias, assume o lugar do homem branco, fala italiano, é modelo do povo italiano.

A ópera segue a tradição romântica e as correntes musicais italianas, mas não deixa de seguir as melodias brasileiras. É recortada em unidades dramáticas. As cenas são grandiosas, com multidões apresentando manifestações cívicas ou revoltas, há uma oração das seis horas da tarde, conforme o livro; há coro e solista, cenas com os personagens principais expressando diferentes emoções. A história de Isabela e o seu amor por Álvaro e a morte desses, conforme o livro, não aparece, também, a heroína não é loura, mas tem os cabelos pretos. Além dos motivos exóticos há a clássica presença do balé. Porém, as duas artes, a literária e a musical, buscam apresentar um panorama com uma estética direcionada para o exotismo e a grandiosidade local, procurando apresentar a força da natureza e um par amoroso para representar a formação da nação de maneira idealizada, e integrada em diferenças culturais.

Por fim, a ópera, fusão de um romance, pode ser assistida nas várias interpretações atuais, em youtube, que procuram simplificar cenas, como os bailados, para diminuir o tempo. Assim há apresentações sem muitos bailados como na estreia, cito a encenação, em BH, do Projeto Harmonia, em 2019. Na abertura, ouve-se um coro dos Caçadores, mas um pouco sombreado. É um cenário original que faz lembrar o filme “Don Juan de Marco”, que, na abertura, tinha a imagem de um livro da obra Don Juan Tenório, de Tirso de Molina, a primeira obra sobre este mito. Na apresentação em BH, não repetiram os cenários grandiosos com fundo de floresta, não há bailados, mas o palco/cenário é um livro. Ali ou perto dele, acontecem as cenas. Dentro dele, há o quarto de Ceci e será onde ocorrerá, na cena final, o arremesso da espada do Dom Antonio Mariz, incendiando a casa. E Peri e Ceci saem juntos. O livro representa um exemplar de O Guarani da obra completa de José de Alencar. Aí temos a perfeita ideia da intertextualidade entre uma obra musical com uma literária.

Por Ester Abreu Vieira de Oliveira - professora Emérita da Ufes, presidente da AEL, membro do IHGES, AFESL e da APEES.