Agosto, 2020 - Edição 258

O legado romanesco de Elvira Vigna

Tema de minha tese de doutorado, defendida recentemente no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas, sob orientação da professora Márcia Marques de Morais, o legado romanesco de Elvira Vigna compreende dez livros, lançados entre 1987 e 2016. A obra literária da autora, no entanto, é mais ampla. Sua vasta produção para crianças inclui títulos como Lã de Umbigo, Problemas com o Cachorro? e Uma História pelo Meio. A novela gráfica Vitória Valentina, dirigida ao público jovem, tem temática e linguagem arrojadas. Publicada postumamente pela Editora Todavia, a coleção de contos Kafkianas foi a vencedora do Prêmio da Biblioteca Nacional, em 2019. Circulando com desenvoltura por diferentes campos da manifestação cultural, Vigna também foi ilustradora, artista plástica e jornalista, havendo trabalhado para os mais importantes veículos de comunicação do país, como Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo e o saudoso Jornal do Brasil.

Seu primeiro romance, Sete Anos e Um Dia, foi escrito em 1984 e editado após três anos, pela José Olympio. O enredo se passa entre 1978 e 1985 e trata do fim da ditadura militar e da redemocratização. Sintonizado com o momento de liberalização social, vocaliza na personagem Catarina a agenda feminista do começo dos anos 1980 e não tem medo de abordar assuntos polêmicos, como a tortura, o aborto e a homossexualidade.

O assassinato de Bebê Martê veio em 1997, já pela Companhia das Letras, casa que publicaria todos os outros livros de Vigna. A história apresenta aos leitores Lúcia, suspeita de haver assassinado o próprio pai, na festa de seu aniversário de oitenta anos. Em Às Seis em Ponto, de 1998, é Maria Teresa a personagem a quem se atribui a morte do genitor, por ela tido como alguém abusivo e desrespeitoso. O desejo de vingança por abusos sexuais sofridos na juventude é, também, o que move A um Passo, de 2004, trama impulsionada pelos movimentos da personagem Nina, que sai de sua cidade disposta a eliminar Gringo, seu antigo professor de Matemática.

Em Coisas que os Homens Não Entendem, de 2002, título inspirado em verso de Camões, em Os Lusíadas, Nita é uma fotógrafa que vaga pelo mundo sem lar e sem destino, após assassinar “acidentalmente” seu amigo Aureliano. Deixei Ele Lá e Vim, publicado quatro anos depois, é um dos mais estudados livros de Elvira Vigna, sobretudo no que se refere à questão da identidade de suas personagens. A narradora, Shirley Marlone, é, provavelmente, uma mulher trans, embora, em nenhum momento, essa condição fique totalmente clara.

Nada a Dizer, de 2010, ganhou o Prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance do ano, e conta a história de um adultério sob o ponto de vista da mulher traída. Em 2012, foi a vez de O que Deu para Fazer em Matéria de História de Amor, que problematiza, mais uma vez, a figura do narrador, algo que Elvira Vigna pautava sempre e que voltou a fazer dois anos depois, em Por Escrito, seu livro mais extenso, com cerca de trezentas páginas, ao longo das quais personagens como Valderez, Pedro, Molly e Aleksandra vão percorrendo suas complexas trajetórias num mundo que nem sempre faz sentido. O último romance da autora, Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas, foi lançado em 2016 e, de novo, discutiu a relação entre mulheres e homens, ponto frequentemente focalizado em sua obra. A narradora, cujo nome não é mencionado, passa as tardes ouvindo os casos de João – um homem casado – com garotas de programa, para compor, a partir dos relatos dele, o seu próprio, acrescentado de omissões, inferências e modificações.

Para quem gosta de desafiar a própria inteligência, vale a pena conhecer o universo criado pela escritora carioca, falecida precocemente em 2017, meses antes de completar setenta anos. O que ela propõe não é uma leitura fácil, de consumo rápido e diversão garantida. Embora refinadamente bem-humorado, seu texto não está preocupado em agradar ou em satisfazer os grandes públicos, pelo contrário. Absolutamente refratária à lógica do mercado, que acredita em fórmulas para o sucesso, Elvira Vigna optou por seguir a trilha mais difícil: suas histórias se apresentam, muitas vezes, marcadas pela intenção de intrigar e de instalar o estranhamento, o desconforto e o incômodo. O impacto que causam, no entanto, é duradouro, e acaba enredando os leitores em sua sofisticada teia de narrativas.

Por Rogério Faria Tavares - jornalista, presidente da Academia Mineira de Letras.