Julho, 2020 - Edição 257

Uma livreira judia em Berlim

Ela e a mala errante viajaram muito. Ao fugir do nazismo, ambas se perderam e se acharam de maneira inesperada: uma sofrida, a outra, avariada. Saíram às pressas de Berlim, juntas, e se encontraram em Paris, não sem um atraso; depois, em nova fuga, foram separadas em Vichy para se reencontrarem, meses depois em Nice, onde Françoise Frenkel esteve escondida por muito tempo. Isso é o que ela nos conta em seu livro tocante Sem Lugar no Mundo: relato de uma livreira judia em fuga na Segunda Guerra Mundial (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018), que mostra os horrores do nazismo. A mala Mädler, grande, com 24 objetos pessoais, como roupas e até uma máquina de escrever, pode figurar como metáfora da judia Françoise – nascida Frymeta Idesa Frenkel, em 1889, na região de Lódz, na Polônia - pois continha apenas itens de sobrevivência com o diferencial da máquina de escrever, marca do seu povo, os judeus, que fizeram da palavra escrita, do livro, a base de sua religião. É o povo do Livro. Assim, depois de naturalizada francesa, a agora chamada Françoise, vai contar-nos como sobreviveu em meio às mais violentas perseguições na França.

Depois de viver alguns anos em Paris e se formar em Letras na Sorbonne, Françoise, visitando Berlim, cidade ainda se reconstruindo após a Primeira Guerra Mundial, reparou que não era fácil encontrar livros franceses lá. Teve, então, a ideia de abrir uma livraria especializada em cultura francesa na cidade, o que foi muito criticado pelos alemães. Mas ela ignorou as admoestações, foi em frente e inaugurou, em 1921, “La Maison du Livre française à Berlin”. Resumindo: a livraria tornou-se, em pouco tempo, o point da cultura francesa, ponto de encontro de intelectuais, escritores famosos e diplomatas estrangeiros. Um sucesso que durou quase vinte anos. Mas, exatamente por isso, os olhos das autoridades alemãs já estavam fixados nela. Continuou, porém, o seu trabalho, até o ovo da serpente começar a quebrar a casca. E os perigos espreitaram-na, como a hedionda “Noite dos Cristais”, entre 9 e 10 de novembro de1938, quando as lojas dos judeus tiveram as vitrines quebradas e tudo foi destruído. Françoise não pôde, portanto, continuar. Abandonou a livraria, o apartamento, Berlim, e voltou às pressas para Paris.

Primeira parada da mala, que só chegou depois dela. Depois de decidir fugir para o sul da França, Françoise deixou a companheira no guarda-volumes. Recebeu-a tempos depois, avariada e amarela de vergonha, já que era dessa cor. E Françoise, como judia errante, peregrinou correndo perigo aqui, escapando ali, passou por Avignon, Vichy ocupada pelos nazistas alemães, desceu para Nice, onde se escondeu como um animal caçado, foi presa pela polícia francesa nas duas tentativas de atravessar a fronteira da Suíça, embora tivesse visto de entrada naquele país. Escondeu-se em Grenoble, em Annecy, em Saint-Julian, sempre em grande perigo, pois a atuação das milícias francesas na região da Saboia era implacável.

Mas aqui precisamos fazer uma pausa para destacar as inúmeras ajudas que essa judia recebeu dos bons franceses não colaboracionistas. Foram muitas as pessoas que a acolheram – cujo ponto alto desse acolhimento ficou por conta do casal proprietário do salão de cabelereiros Marius, nome que lembra o bondoso jovem Mário, de Os Miseráveis, do também bondoso Victor Hugo, orgulho da França. Pois bem, Françoise não deixa dúvida de que foi salva e deve sua vida ao casal que a escondeu até dentro do guarda-roupa, correndo todos os riscos, durante uma inspeção dos gendarmes à procura de judeus e ilegais no país. Françoise passou fome, frio, dormiu morta de medo ao relento na floresta, foi roubada, maltratada de todas as maneiras possíveis. Se ela perguntasse àquele sacristão de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, por que tinha nascido, talvez ele respondesse algo semelhante ao que respondeu à dona Plácida: você nasceu para fugir, para comer mal ou não comer, andar de um lado para outro, adoecendo e sarando, triste, humilhada, desesperada hoje, resignada amanhã, para ser presa e condenada, para não ver mais a sua mãe e parentes e amigos queridos. Você nasceu no lugar errado, na hora errada. E isso é porque é filha do povo eleito.

Essa é a saga de uma mulher corajosa – que pouco ou nada critica os que a prejudicaram – e que teve de atravessar arames farpados e um fosso, o seu Mar Vermelho, para chegar à Terra Prometida daqueles dias nefastos, a Suíça, aonde literalmente caiu com apenas uma trouxa de roupas, a que a mala se reduzira. E escreveu essas memórias, rastros de sua dor – recomendadas pelo premiado pelo Nobel Patrick Modiano – e que foram encontradas anos depois num pequeno lugar do mundo, o bazar beneficente Companheiros de Emaús, em Nice, na França, onde, um dia, como amaldiçoada, Françoise Frenkel não tinha onde pousar a cabeça.

Por Vera Lúcia de Oliveira Vera Lúcia Oliveira é membro da Associação Nacional de Escritores e da Academia de Letras do Brasil.