Julho, 2020 - Edição 257

Dona Arminda – um mini conto para a quarentena

Fui alertado por minha mãe, cuja primeira frase, “você está com tempo agora?”, deu logo a entender que o telefonema não seria rápido. Sua voz soava pausada e grave, como em toda vez que tratava de tema importante, que não poderia, de modo algum, ser esquecido ou negligenciado: ‘Não atrase um minuto. Dona Arminda não tolera a falta de pontualidade. Por isso, acorde cedo e se arrume com antecedência.” Como se tivesse uma lista de recomendações à frente, prosseguiu: “Vá bem-vestido, composto. Nem pense em bermudas, tênis, blusa de manga curta.

Dona Arminda não gosta de informalidades.” Antes de desligar, emendou: “E cuidado com a linguagem. Nada de gíria, de coloquialismos, de intimidades. Ela presta atenção a tudo.” Zelosa, ligara-me três dias antes do compromisso, prevenindo que enviaria um lembrete pelo whatsapp na noite anterior à visita, promessa que, de fato, cumpriu. Obediente às instruções, executei, com rigor, o roteiro sugerido. Banho tomado, dente escovado, cabelo penteado, vesti os trajes mais adequados e conferi, no espelho grande do quarto, se estava de acordo. Estacionei o carro em frente à mansão em que Dona Arminda morava e toquei a campainha na hora certa. Uma empregada uniformizada me atendeu, cerimoniosa e eficiente, indicando-me uma poltrona específica numa das salas de estar. Dona Arminda não tardou a aparecer, em passos curtos e acelerados, de quem tem pressa.

Era a primeira vez que a via. De baixa estatura, pareceu-me mais magra que nas fotografias publicadas pela imprensa, em que aparecia com frequência, tanto nas colunas sociais, em festas badaladas, quanto em cadernos dedicados às mulheres, quando dava dicas de bons modos e de etiqueta. A idade avançada não impedia o batom e a maquiagem, os brincos, o colar, as pulseiras e os anéis, as unhas pintadas. Os tons da camisa de seda, da calça de alfaiataria e do cinto de couro combinavam com o escolhido para os mocassins discretos e sofisticados. Referindo-se à minha mãe como uma de suas melhores amigas, disse que ela era uma das pessoas mais confiáveis que conhecia. “E em você também posso confiar. Eu tenho certeza. Pesquisei sua vida em detalhes antes desse nosso encontro.” Arqueei as sobrancelhas, incomodado, sem entender a que ponto Dona Arminda queria chegar. A dúvida se desfez no segundo seguinte, já que ela foi direta:

“Então o senhor escreve biografias.” Confirmei, relatando a ela, brevemente, os trabalhos que havia realizado, como ghostwriter. “As pessoas me contam a sua história e eu passo para o papel.” “É isso o que eu quero. Exatamente isso.” “Tenho a certeza de que sua vida merece um belo livro”, falei, na tentativa de ser amável, ao que ela reagiu, veemente: “Livro que irá comigo, fechado, para o túmulo.” Sem compreender suas palavras, pedi mais informações. “Sim, tudo o que eu revelar aqui irá para o papel e, depois, sem escalas, para o meu caixão, em envelope lacrado, que ninguém abrirá. O meu objetivo é outro. Não tive uma existência fácil, embora muita gente ache o contrário. Nem sempre agi como Deus gostaria.” Abaixando a voz, confessou, encarando-me nos olhos, como quem busca um cúmplice: “Que não nos ouçam. Acho que mereço o inferno. Sim, ele mesmo, o in-fer-no. Mas vou tentar pelo menos o purgatório. O que preciso é explicar a Deus as minhas razões, argumentar por que fiz o que fiz. O senhor entendeu? Quero chegar bem preparada para o juízo final...” Dissimulando a perplexidade, continuei a ouvir o plano de Dona Arminda: “Tudo deverá ser mantido no mais absoluto sigilo. O senhor me dá a sua palavra?” “Claro, claro”, garanti, ainda pasmo com a ideia de que meu único leitor seria o Supremo Criador.

Por Rogério Faria Tavares - O jornalista Rogério Faria Tavares é presidente da Academia Mineira de Letras.