Junho, 2020 - Edição 256

Isolada nesta casa

Estou isolada nesta casa, no centro do mundo. Escriba, copio textos rituais. Tomo atitude e posição em relação a forças que caminham lá fora: pragas, pestes, epidemias, chuvas malignas, gotículas virulentas, que insistem em entrar pelas portas, pelas frinchas, pelos vãos do telhado e da consciência. A Terra, li nesta página, não disfarça mais seu drama, não encobre mais seus mortos, que se empilham nas calçadas, nas valas, nos caminhões, nos frigoríficos.

Movimento-me dentro da casa como um fantasma pela sala. Abro e fecho as cortinas de veludo roxo. Desço até o porão, subo ao sótão, removo poeiras e recordações, cozinho bolotas de carne, busco refúgio num travesseiro, como se fosse o seio da minha mãe. Mas o sono é pouco, o sangue arde, a sede nunca é mitigada. Batidas do relógio se sucedem numa cadência de opressão

Quando criança, eu me sentia, ao mesmo tempo, uma menina solitária e uma velha, muito sábia, conhecedora de sortilégios, de coisas humanas e divinas. Agora, nesta casa cheia de quartos, vive aquela velha que fui. Uma mulher arquivelha, que consultou inúmeros livros, testemunhou tantas histórias, que nem tem vontade de contá-las a ninguém. Relatos que pertencem a um passado onde acender lampiões no fim da tarde, para admirar o voo das mariposas em torno da chama, era uma experiência das mais trágicas e estonteantes.

Nesta casa, quase um casulo, aceitei as condições da existência e elas são poucas: nascer, viver e morrer. Da janela, posso tecer fios de seda em direção ao infinito. Permanecer em silêncio por horas, sentindo o ar apocalíptico que paira na rua vazia

Não posso reclamar, é uma casa resistente, capaz de suportar os blocos gigantes que desabaram em avalanche sobre o teto. Blocos que se espalharam por aldeias e metrópoles, em formas alternadas de coroas e tempestades.

Sou eu mesma nesta casa: com meus cabelos grisalhos, meu cérebro e tripas. Potência de alto risco nas entranhas. Não importa que tudo aqui seja antigo: da cristaleira aos valores que todos desprezam. Continuo fiel ao espírito que me habita e ao qual, um dia, cedi a palavra poética. Uma fidelidade cada vez mais muda e canina

Este cômodo, apesar de pequeno, na minha mente é palco para um banquete: logo virá o rei, montado em seu cavalo branco e se assentará ao meu lado, com seus servos e o meu povo, minha família distante. Entre taças de vinho, brindarei àquele que ouviu meu chamado na angústia e veio para me livrar de tudo o que me aconteceu: torturas, espadas, dores, coração partido, ingratidões, essa fome de justiça, esse confronto constante com emissários da Pérsia e de outras nações, cobrando seu jugo e seus impostos.

Estou extenuada nesse isolamento. Mal posso me mover na cama. Mas esta casa tem atmosfera de prece. É de uma mulher arquivelha, edificada nas rochas e nas nuvens, pronta para virar lembrança.

Por Raquel Naveira*

*Raquel Naveira é membro da Academia Sul-matogrossense de Letras.