Junho, 2020 - Edição 256

Bem melhor – um miniconto para a quarentena

Ouviu na televisão que já era possível sair. Que o perigo havia passado, finalmente. Procurou checar a informação nos outros canais. Não confiava facilmente no que dizia o repórter. Depois de navegar por todas as emissoras, rendida, admitiu que sim, era verdade, não tinha como negar. A filha telefonou na mesma noite, contente, dizendo que, no dia seguinte, iria visitá-la. Sem controlar a resposta, pediu que ela ainda não viesse. “Para que a pressa? Fique tranquila, venha no fim de semana”, respondeu, num impulso, intrigando-se consigo mesma. Jordana não entendeu. A mãe repetiu: “Depois. Eu preciso de um tempo”. Chocada, a filha perguntou se estava tudo bem. Alice disse que estava tudo ótimo, que queria apenas arrumar um pouco a casa, comprar umas flores para alegrar o ambiente e uns chocolates para agradar os netos.

tempo, pela primeira vez em décadas, de mirar-se no pequeno espelho do banheiro. Acontecera sem que ela planejasse, durante mais uma de suas faxinas perfeitas, obsessivas, hábito inspirado pela mãe, de quem herdara o rigor e a necessidade da reputação. O fato é que, por alguns instantes, ficou imobilizada em frente a ele. A princípio assustada, custou a reconhecer a fisionomia cansada, os olhos fundos, a expressão tensa, os cabelos desalinhados. Uma lágrima brotou, sem que fosse possível contê-la. Testando diferentes ângulos, enxergou cada contorno, cada marca. Uma ou duas rugas fizeram-na relembrar momentos difíceis: a morte do marido, o acidente fatal com o primogênito, a descoberta do câncer da mama, o tratamento agressivo, a cura a fórceps. Engoliu em seco. Em seu quarto, corajosa, aproximou-se do espelho do armário, vendo-se de corpo inteiro. Ousada, desfez-se do vestido de todo dia. Em roupa íntima, encarou as curvas e os relevos. Persistente, manteve o ritual pelos dias seguintes.

Precisou de uma semana para que se visse em pelo, com atenção, como jamais. Vencendo a vergonha de si mesma, a culpa que carregava desde criança nos ombros, o estigma da antiga enfermidade, esticou braços, abriu pernas, ensaiou um passo de dança. Chegou a sorrir. Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Três dias depois, superando bloqueios, liberou as mãos da paralisia, fazendo-as passear por sua pele. Estava em ambiente seguro. Ninguém viria. Cautelosa, olhando ao redor, abraçou os peitos ausentes.

Sem precisar arrumar o almoço dos genros que diariamente recebia em sua mesa, resolveu que faria só os pratos que ela, apenas ela, gostava de comer. Procurou nos armários e nas gavetas até achar o antigo caderno de receitas da avó. Num final de tarde, na varanda lateral, assentou-se confortavelmente no sofá e começou a leitura, como quem devora um romance sempre adiado. Selecionando algumas páginas, escolheu primeiro os doces. Com a lista de ingredientes nas mãos, encomendou os ovos e os açúcares, a manteiga e os óleos. Os leites. O condensado, o de coco, o de arroz. O creme chantily. Foram dias felizes, em que ela se entreteve na cozinha como há tempos não fazia. Daí foi fácil passar ao banho, que ficou demorado, gostoso, relaxante. Reabilitada, a banheira esquecida regressou ao seu lugar de honra, como nos primeiros anos do casamento. O mesmo se passou com a cama, agora encantada com perfumes e incensos

No domingo, cumprindo a palavra, abriu as portas. Jordana, Mário Sérgio e as crianças, pontuais, trouxeram os pratos combinados, felizes com a perspectiva de reencontrar a velha senhora. Esta, não havia mais. Havia outra. Bem melhor.

Por Rogério Faria Tavares*

*Rogério Faria Tavares é jornalista e presidente da Academia Mineira de Letras