Junho, 2020 - Edição 256

A morte de Garcia-Roza

“Se você perde a palavra, perde aquilo que constitui o sentido das coisas, o significado das coisas”, declarou, em uma de suas últimas entrevistas, o romancista, contista, professor universitário e psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza

Após mais de um ano internado, depois de sofrer um acidente vascular cerebral, o mestre da literatura policial brasileira morreu, aos 84 anos, no Hospital Samaritano, em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro.

Filho de uma família com 12 irmãos, o carioca Garcia-Roza nasceu em 1936. Passou parte da infância e adolescência em Vitória, capital do Espírito Santo. Aos 18 anos, voltou ao Rio de Janeiro, onde se formou em filosofia e psicologia

Casou-se com a escritora Livia Garcia-Roza, em maio de 1978. Em 1988, participou da fundação do programa de pós-graduação em teoria psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de onde era professor emérito. Depois de décadas de trabalho na academia, com conhecimento científico de sobra para explorar a mente de criminosos e policiais, decidiu arriscar-se na literatura. Estreou, em 1996, aos 60 anos de idade, com a novela policial O Silêncio da Chuva, considerado por muitos o seu melhor romance. Vencendo, já com esse primeiro livro de ficção, os prêmios Nestlé (1996) e Jabuti (1997). Criou, como personagem principal, o delegado “Espinosa”.

Prestes a virar filme, sob a direção de Daniel Filho e com o ator Lázaro Ramos no papel de Espinosa, O Silêncio da Chuva foi publicado, em 1996, depois da insistência de Jorge Zahar, amigo e editor de seus livros de psicanálise. Foi Zahar quem o incentivou a procurar Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, editora de seus livros de ficção. O romance inaugurou uma escola de literatura policial no Brasil, ao narrar um suicídio e uma cascata de assassinatos e sequestros.

Suas histórias se caracterizam por apresentarem traços irônicos. Espinosa é um policial comum, funcionário público, para quem a resolução satisfatória dos crimes nem sempre se concretiza. O investigador carioca tampouco é uma máquina infalível de dedução, tal como Auguste Dupin, o pioneiro detetive do escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), ou Sherlock Holmes, criação do escocês Arthur Conan Doyle (1859-1930).

Arquiteto de situações ambíguas, Garcia-Roza constrói enredos a partir da investigação dos motivos psicológicos que levam ao assassinato, dando margem a finais abertos. Em O Silêncio da Chuva, por exemplo, Espinosa é colocado frente a um mistério envolvendo o suicídio de um executivo, que deixa uma carta à polícia, alegando que sua morte fora autoinduzida. No fim da narrativa, o leitor fica sem saber o que o delegado fará com os elementos materiais do crime.

Achados e Perdidos e Vento Sudoeste, por exemplo, também têm o detetive como protagonista. As tramas de Garcia-Roza aconteciam em Copacabana. A delegacia onde trabalha Espinosa era no bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro.

Garcia-Roza também viveu a juventude em Copacabana. Dizia que a graça do bairro, nos anos 1940, era poder atravessar as ruas sem carros. Frequentador da praia, gostava de pegar ondas com pneus de avião, que conseguia graças a contatos no aeroporto Santos Dumont. Adquiriu o hábito da leitura em casa, com um tio. A famosa estante do delegado Espinosa, protagonista de quase todos os seus romances, na qual os livros se dispunham sem auxílio de prateleiras ou estantes, era cópia fiel daquela que seu criador teve quando jovem. Fascinado pelas jornadas de Raskólnikov e Ulysses, ao ser questionado sobre seu livro preferido, empatava Crime e Castigo com Ilíada e Odisseia, dos quais tinha edições cheias de anotações meticulosas

quais tinha edições cheias de anotações meticulosas. Um dos mais importantes nomes da literatura brasileira contemporânea, Garcia-Roza ocupa um lugar de destaque dentro da produção novelística no gênero policial. Seus romances se distanciam do realismo, comum à outra tendência do mesmo gênero, na qual as histórias se desenrolam em meio à miséria social das periferias, ao banditismo urbano ou ao tráfico de drogas. O mestre preferia que seu público acompanhasse a história no mesmo nível, com pistas e teorias sobre o comportamento humano dispostas de forma clara ao longo das páginas. Muito mais interessada no interior do que no exterior, sua prosa buscava dar ao leitor condições de interpretar as motivações daqueles personagens tomados por uma habitual ou momentânea loucura. Dono de um humor afiado, Garcia-Roza foi responsável por influenciar gerações de psicanalistas e escritores.

Seu livro mais recente foi A Última Mulher, publicado no ano passado, depois que o autor já estava no hospital. Além da esposa, Garcia-Roza deixa a família formada pelos filhos que ambos tiveram em relacionamentos anteriores, três no total, além de duas netas e um bisneto. Em rede social, a viúva escreveu: “Como é difícil aceitar que ele já está no passado; Luiz Alfredo permanece vivo, embora já distante de nós, um homem que veio preencher o mundo com o seu saber e a sua competência.”