Maio, 2020 - Edição 255

Seis propostas para o fim do mundo

O título é óbvia homenagem ao grande autor italiano (nascido em Cuba) Italo Calvino (1923-1985), que escreveu as Seis Propostas para o Próximo Milênio, publicadas postumamente em 1988. Imagine-se o que diria hoje, ante a sua bela Itália devastada pelo coronavírus... Calvino bem que poderia ter assistido não só a uma passagem de século, mas a uma virada de milênio – privilégio de poucos na humanidade, desde que se estabeleceu a convenção do nosso calendário. Junte-se, a esses dois momentos, o que agora se vive, com o mundo inteiro paralisado pela covid-19, como se um terremoto gigante sacudisse todo o planeta, um monstruoso tsunâmi não deixasse a seco um palmo de terra nos cinco continentes. Triste privilégio sofrê-lo, sim, mas de valor histórico, porque incomum no passado da espécie humana. Lembra-me um conterrâneo cearense que dizia: “Quando o mundo se acabar, vou para a serra de Maranguape...”, onde nasceu Chico Anysio. Com a pandemia, inútil ir a Maranguape: “Minas não há mais”, como disse Drummond no poema “José”.

Aos milhões de brasileiros isolados em casa, o melhor que lhes posso sugerir é a leitura, de livros novos ou daqueles aos quais voltamos. Note-se que não falo em “releitura”, porque jamais “relemos” um livro, mas o lemos outras vezes, quantas venham a ser ao longo da vida. Se “nunca dois leitores leram o mesmo livro”, como escreveu o crítico Edmund Wilson, pode-se também dizer que de um livro jamais se farão leituras idênticas, embora pela mesma pessoa. Os livros, claro, conti nuam os mesmos: somos nós que mudamos, com a experiência, o saber, a visão diversa dos homens e das coisas que ganhamos com o passar do tempo. De maneira que não há “releituras”, mas “outras” leituras, “novas” leituras, em que se revivem o prazer das descobertas e a emoção com que nos deixamos conduzir, elevar, engrandecer pela arte.

Graças ao “distanciamento social” destas últimas semanas, leio pela terceira vez Grande Sertão: veredas, a obra-prima de Guimarães Rosa, para mim o romance maior da literatura brasileira, em todos os tempos, aquele que levaria para a famosa “ilha deserta”. Impressionam as falas, ideias, símbolos, sugestões rosianas que só agora percebo, como se nunca antes houvesse lido a história. Assim também com Quincas Borba, de Machado de Assis, cujas leituras já não conto, por elegê-lo à frente de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Projeto de nova leitura a longo prazo é a monumental trilogia O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, capaz de fazer, sozinha, a grandeza de qualquer literatura. Segundo Josué Montello, os escritores dividem-se entre os que “contam” histórias e os que “escrevem” histórias. Acompanhado pelo gaúcho Verissimo, ele mesmo pertence aos dois grupos, como autor da admirável trilogia maranhense composta pelos romances Cais da Sagração, Os Tambores de São Luís e Noite sobre Alcântara.

Aficionado por biografias, li recentemente duas. O Homem que Aprendeu o Brasil, de Ana Cecilia Impellizieri Martins, é justa homenagem que se presta a Paulo Rónai, intelectual húngaro que engrandece e dignifica a literatura brasileira. Em Lima Barreto: triste visionário, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz apresenta a vida e a obra do romancista de Policarpo Quaresma, do contista de “O homem que sabia javanês”, do memorialista do Diário Íntimo, a quem não se deu em vida o reconhecimento merecido com que hoje se inclui entre os grandes valores da nossa ficção.

Somem-se as obras citadas e veremos que o título em homenagem a Calvino é duplamente enganoso: as propostas são mais de seis, e o “fim do mundo”, queira Deus, não acontecerá tão cedo. Jornalista, se sobrevivesse sozinho à hecatombe derradeira, bem que eu gostaria de contar a história, mas para quem...?

Por Edmílson Caminha