Maio, 2020 - Edição 255

O invasor

A nave pousou do outo lado da rua, próximo ao mercado de frutos do mar, que, mais uma vez, impreterivelmente às 5h da manhã, abriu as suas portas. Imediatamente o movimento de feirantes tomou conta daquele espaço onde todos os dias centenas de pessoas vinham à procura de produtos frescos para o preparo de suas refeições diárias.

Quando o mercado foi aberto, ele já se encontrava lá. Mas como, se ninguém o viu chegar? Talvez tenha dormido ali próximo ou quem sabe chegou antes de todos só para observar o vai e vem da multidão. O fato é que ele transitou por entre boxes de peixes, filés, moluscos, crustáceos, lagostas, lulas, polvos... sem que ninguém notasse a sua presença. Até porque não poderia mesmo ser visto a olho nu. Sua intenção naquele mercado não era adquirir peixes mais frescos ou aproveitar as muitas promoções dos feirantes àquela hora do dia. Sua única e terrível intenção era passar adiante os seus genes, porque ele já se encontrava alojado dentro de um corpo infectado e sua missão era disseminar o contágio...

E, de repente, o que parecia ficção científica tornou-se a mais cruel das realidades: um vírus com alto poder de letalidade estava no meio de nós ou, melhor dizendo, dentro de alguns de nós. Sua incômoda presença nos deixou literalmente nus, desprovidos da nossa idolatria ao dinheiro e da falsa segurança em nossas armas. Desarmou nossa prepotência e, com sua impertinência, nos fez descer do pedestal da nossa mania de grandeza. Trouxe perguntas sem respostas e aprofundou ainda mais o mistério por trás daquela “porta”: o que será que tem do outro lado?

O invasor chegou fazendo um grande estrago: todos em quarentena e cada um no seu “quadrado”, ou melhor, em sua casa, feito pássaro engaiolado sem poder voar. Conhecido como Covid-19, o invasor igualou a todos: nobres e pobres, em estado grave, precisam do mesmo tipo de aparelho de ventilação mecânica para permanecerem vivos. Mas, o vírus que ceifa vidas mundo afora também nos ensinou uma forma de viver a muito tempo esquecida pela maioria.

Que ironia, um ser microscópico desprovido de inteligência desafia nossa ciência a correr contra o tempo atrás da cura e em meio a nossa loucura de querer ter sempre mais e mais, nos mostra o valor das coisas simples: o bem que um abraço nos faz; a importância dos nossos pais, avós, filhos, netos, amigos... Que devemos aproveitar o tempo sem nos tornarmos escravos dele; amar a vida e não apenas passarmos por ela; nos aceitarmos como irmãos na grande Família Humanidade e a reconhecermos que o Planeta Terra é a única casa que temos e que essa casa está urgentemente necessitando de cuidados tanto quanto nós.

O invasor chegou silencioso e rapidamente expôs nossas fraquezas e o caos em nosso sistema de saúde; colocou em xeque nossas maiores economias e fez o mundo de repente ser regido pelo maestro de uma pandemia. E foi diante da sua real ameaça que nos demos conta de que não somos tão poderosos quanto pensamos. Não somos super-heróis e temos de aceitar como dói não ter poder para poder curar a todos; como dói não ter poder para poder salvar a todos.

Em poucos meses o invasor pegou carona em nossos medos e encheu de incertezas as nossas almas ao revelar que a única certeza é que ele é ágil e as nossas vidas muito, muito frágeis. E, agora, o que fazer diante de um inimigo tão poderoso? Recuar, se entregar, dar-se por vencido? Não, nós não temos essas opções.

O que temos são guerreiros e guerreiras vestidos de jalecos e máscaras nos campos de batalhas dos hospitais; outros guerreiros e guerreiras nas ruas, atrás dos balcões, nos centros de pesquisas, nas estradas...

O que temos é solidariedade e esperança, joelhos dobrados e mãos em preces; fé e coragem para dizer a esse invasor de corpos que ele pode até nos manter presos em casas, mas jamais cortará as asas da nossa imaginação e dos nossos sentimentos; que pode nos privar de um abraço apertado, mas jamais impedirá que nos abracemos em amor e saudades; que pode até nos forçar a manter nossas portas fechadas, mas jamais irá nos impedir de abrirmos as janelas; sim, ele pode até destruir o jardim, mas jamais conseguirá matar a primavera. Pois, sabemos que já vencemos outras guerras e que mais cedo ou mais tarde também venceremos essa.

Por ora, continuaremos firmes em nossas casas cumprindo o isolamento social tão necessário. E depois que tudo isso passar, porque vai passar, que sigamos os nossos caminhos com o dever moral de nos tornarmos seres humanos melhores. Afinal, se ainda permanecermos por aqui é porque de alguma forma as nossas vidas foram poupadas. Não nos esqueçamos disso.

*Peilton Sena é poeta, escritor e membro efetivo da Academia Santista de Letras.

Por Peilton Sena*