Abril, 2020 - Edição 254

O Papa que não gostava de Deus

Eugênio Giovenardi é dos poucos brasileiros capazes de escrever um livro com a riqueza humana e a magnitude literária que põem As Pedras de Roma (Porto Alegre: MaisQNada, 2009) entre os mais expressivos romances da nossa literatura, nos últimos tempos. Teólogo, filósofo e sociólogo, o autor detém profundo conhecimento da Igreja Católica, a que apela para contar a história impressionante de Giovanni de Medici, feito cardeal com 13 anos de idade, e que governou o Vaticano, como Papa Leão X, de 1513 a 1521, quando se suicida envenenado, aos 45 anos.

Tempo da maior importância na história da humanidade, nele se assistiu ao esplendor da Renascença, à Reforma de Lutero, ao surgimento das grandes nações da Europa, à consolidação de monarquias, à decadência do feudalismo, à perda do poder secular da Igreja, à descoberta de caminhos para o novo mundo ocidental. Matérias valiosas, que, na pena de historiadores acadêmicos, renderiam páginas burocráticas e enfadonhas. Ocorre que Giovenardi, além de grande pesquisador, é escritor admirável, que prima pela elegância do estilo, fluidez da narração e apuro da linguagem. Ideia relativamente comum a romancistas, o texto é de “segunda mão”, pois veio a quem o publica, no caso, de um ex-diretor da Biblioteca Vaticana.

São os “Rapporticonfidenziali”, lembranças, pensamentos e relatos de Leão X talvez anotados, e guardados, por um anão que lhe prestava serviços. Filho de Lourenço, o Magnífico, de quem viera o gosto das artes, das letras, das ciências, o herdeiro Giovanni cedo se descobre mais voltado para as pompas do mundo que para o despojamento do espírito: Quando concorro aos ritos, o faço como ator de teatro, com vestuário adequado, movimentando-me como um personagem no palco iluminado. (...) Cardeal adolescente, na pompa do cerimonial, vestido de seda escarlate, portava-me com a dignidade postiça exigida pelo ato litúrgico.

Encenava uma peça que reunia o cômico, o trágico e o dramático num estrado suntuosamente decorado, sob os olhares ocultos das divindades e, ao mesmo tempo, dos espectadores encantados. Ainda me seduz a arte do religioso, a poesia do misticismo, embora dele não participe com o entusiasmo de um místico. Sou um homem da terra, não do Olimpo.

Prefere os prazeres intelectuais ao exame da teologia: A especulação teológica não me entusiasma. Aborrece-me gastar o tempo em ouvir discussões sobre teses que escarafuncham as entranhas da divindade. Deixo aos dominicanos e agostinianos a tarefa de provar a verdade da ressurreição de Cristo e sua reencarnação.

Não se ilude quanto aos possíveis méritos com que lhe é dado exercer o poder papal: Das virtudes que se exigem de um papa, nenhuma delas é mais eficaz do que a sorte. A esperteza política está em manter os efeitos da sorte a seu lado. A virtude do político é ser contraditório. As circunstâncias nos contradizem e nos traem. Aposto nos erros e fracassos alheios mais do que em minhas virtudes. E chega a questionar, com um amigo poeta, o conhecimento que se possa ter do Criador:

“Sinceramente, Bembo, quem conhece Deus? Quem sabe o que ele pensa? Deus não pensa. Pensar é humano. Pensar é desvendar o desconhecido. (...) Se Deus fala por mim não tenho certeza, é suficiente que os outros a tenham.” Sensível aos prazeres da carne, com a princesa Porzia Dupuy tem um filho, que fará cardeal, e entrega-se na cama a experiências homoeróticas com o cardeal Petrucci: Fâmulos e serviçais do palácio divertiam-se com as cenas de meus ciúmes, nutridos pelas leviandades de Petrucci. (...) Na festa da colheita das uvas, foi trazido ao castelo desfalecido e bêbado.

Recusei-lhe o quarto, desprezei seu arrependimento, assinei um lacônico despacho e o mandei de volta a Roma. A fazer contraponto com a grandeza de Sumo Pontífice, a fragilidade humana representada pela fístula anal que o atormenta ao longo da vida: O cardeal Petrucci me untava com unguentos de zinco e essências de sândalo. Tornei-me um peso e um estorvo para seus dias de repouso e suas vaidades. Por isso, aceitei de bom grado que os curativos me fossem feitos por jovens enfermeiros do nosocômio Santa Madalena.

Tão bem escrito é o romance que chegamos a crer na veracidade do diário, como se fora mesmo um documento histórico, por entre personagens como Erasmo de Roterdam, Rafael e Leonardo da Vinci. As reflexões são de tal maneira lúcidas – e surpreendentemente atuais – que lembram o Maquiavel d’O Príncipe, embora reduzido por Leão X a “funcionário ambíguo, humilde e calculista”: O poder é o laço que une a cabeça do Vaticano ao corpo da Ecclesia. (...) Se um dia for subtraído ao Papa o poder de coroar reis e imperadores, sua autoridade será meramente decorativa. Sua voz será ouvida com respeito, repetida por reis, retransmitida por bispos e cardeais, sem ser obedecida.

A política é a arte de enganar com prestidigitações do possível a obtenção do incerto. A cristandade precisa mais de poetas do que de padres. O espiritual e o sensual convivem. Separá-los é querer desunir o corpo da alma. Condenar a vida à morte. Se todos os cristãos fossem honestos e castos, a Igreja de Roma seria pobre como os camponeses. Ao governar, percebe-se que não necessariamente se tem o poder. Nada que se diga diante de um copo de vinho, e, principalmente, depois dele, tem caráter sigiloso. Não há que temer pelo futuro. A história é feita de fatos. É preferível ter inimigos que acusam a amigos que silenciam. Equívoco imperdoável é estar no lugar errado com pessoas erradas. Os teólogos costumam envolver em complexas e belas frases o que não entendem. Não se chega a segredos de Estado sem uma alcova e lençóis limpos. Que pode haver de herético em alguma interpretação da Bíblia, ela mesma um amontoado de fatos contraditórios? Os capítulos, elegantemente titulados em latim, são encimados por imagens reduzidas de quadros famosos, que, em outra edição, merecem, para que melhor apreciem os leitores, reproduções coloridas, em página inteira. É o cuidado devido ao romance com a excelência deste As Pedras de Roma, cuja grandeza nos lembra o primoroso ensaio Amor a Roma, de Afonso Arinos de Melo Franco.

Dois livros notáveis, belas homenagens à urbe amada por Goethe como a capital do mundo. Sobre as milenares pedras de Roma, Eugênio Giovenardi faz o Papa Leão X desfilar silencioso à frente do seu purpúreo préstito de cardeais, como símbolo de uma ilusória santidade e da triste pequenez a que todos somos reduzidos pela humana condição.

Por Edmílson Caminha